A foice da morte, que circula no planeta desde o início da pandemia, estendeu seu arco nos últimos dias, com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Que iniciou uma guerra desvairada, mobilizando gigantesco comboio de tanques, aviões de transporte balístico, navios com mísseis, 200 mil soldados, sob um grave alerta de forças nucleares.
O autor dessa terrível façanha é um ex-agente da temível KGB, centro de espionagem nos tempos da União Soviética, o todo poderoso Vladimir Putin, cuja ambição ultrapassa a meta de resgatar a URSS, para se transformar no czar da terceira década do século XXI. E, assim, restabelecer o antigo conceito da potência mundial.
Vaidoso e conhecedor dos mecanismos de poder, mexeu na Constituição para permanecer uma eternidade no centro das decisões, sendo o mais longevo de todos os líderes do território russo desde os tempos de Joseph Stalin, falecido em 1953. Putin, de 69 anos, pode sentar-se no trono do Kremlin até 2036, mesmo que seu mandato se encerre em 2024.
Seja qual for o resultado da guerra, cujo objetivo é voltar a anexar a Ucrânia à Rússia e evitar que aquele país ingresse na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), Putin sairá como vilão. Pois emerge como invasor, interferindo na soberania de uma Nação, valendo-se de divisões internas, como a que abriga os separatistas pro-Rússia de Donetsk e Luhansk, os territórios, na região de Donbass, que Putin reconhece como independentes.
A União Europeia e os Estados Unidos se uniram na condenação, impuseram um pacote de sanções duras contra a Rússia, sob a simpatia do Ocidente em relação ao ex-comediante que preside a Ucrânia, Volodymyr Zelensky, hoje um líder reconhecido e aplaudido por 90% da população ucraniana. A essa altura, o que resta a Putin fazer?
Dar uma demonstração de força para sinalizar o poderio militar da Rússia. Destruir a configuração da Ordem Política Internacional e organizar outra, tendo a Rússia no centro. Mas os primeiros dias de batalha mostraram um desarranjo logístico – falta de combustível – subestimação da capacidade de resistência do exército ucraniano, crença na renúncia do presidente Zelensky, considerado por Putin um ator de segunda e crença, até, no apoio popular que implicaria adesão das ruas ao seu ato invasivo.
Pois bem, tudo tem saído ao contrário. Zelensky mobilizou a população, uniu os países da OTAN, até então uma instituição sem prestígio, angariou ajuda em dinheiro e armamentos para a Ucrânia, isolou a Rússia. Putin se transforma no maior pária do mundo, demonstrando ser Davi enfrentando Golias. Putin certamente está ciente da sujeira que apagou o que lhe restava de estadistas. Pretende limpar o entulho ao seu redor, mas não lhe resta muitas alternativas. Ameaçar a Finlândia e a Suécia, se esses países entrarem na OTAN, é mais um de seus absurdos.
Sair da Ucrânia, que pediu ingresso na OTAN, sem garantir sua neutralidade e o reconhecimento das zonas separatistas do Donbass seria, para ele, uma saída desmoralizante. E usar sua estrutura nuclear, apertando botões perigosos, seria o aceno ao fim da civilização. Teria coragem? Analistas que conhecem sua vida garantem que ele faria essa aventura.
O isolamento econômico a que a Rússia foi empurrada trará danos a muitas economias, inclusive a brasileira, que carece, por exemplo. de fertilizantes produzidos pelos russos. Os negócios de muitos países serão afetados por causa da expulsão da Rússia do Swift, o sistema de pagamentos internacionais. E haverá também consequências na esfera político-eleitoral. A aproximação de algum candidato com Putin, principalmente no campo da solidariedade, significa a integração de valores, a similaridade de comportamentos e ações.
Bolsonaro fez a famosa fotografia com o todo-poderoso da Rússia, a quem considera um “amigo”. Em sua cabeça deve ter passado a ideia de uma imagem para a posteridade, com o simbolismo de uma potência militar disputando com a China e os EUA a condição do primeiro lugar no mundo. As redes sociais bolsonaristas vão tentar aliviar a carga negativa sobre seu “mito”. Mas a força da imagem negativa do outro “mito” será tão forte que até outubro ativará o animus animandi eleitoral. Façamos companhia ao espírito do tempo. Sob a fumaça da guerra.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político