A conjunção de um presidente incapaz, uma grei de parlamentares oportunistas e um procurador-geral da República que não demonstra ter gana para cumprir o papel que a Constituição lhe reserva criou esse ambiente singular no qual vultosos recursos do Orçamento são usurpados à luz do dia para financiar ambições estranhas ao interesse público praticamente sem reação. Poucas vezes em nossa história republicana foi tão fácil para uma plêiade de políticos indignos de seus mandatos malversar recursos públicos. Vedações legais, imperativos morais ou espírito público parecem meros detalhes incapazes de fazê-los perder algumas horas de sono que sejam.
O jornalismo profissional e independente tem feito a parte que lhe cabe para a construção de uma sociedade democrática, vale dizer, uma sociedade informada, livre e participativa. Nos últimos três anos e meio, só o Estadão revelou mais escândalos de corrupção do que o governo que se jacta de ter “acabado com a corrupção” em Brasília teria coragem de admitir. A rigor, antes mesmo de Jair Bolsonaro tomar posse como presidente da República este jornal já havia revelado ao País o esquema das “rachadinhas”, lançando luz sobre as suspeitas de peculato, lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito que recaem sobre o filho mais velho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, e o “faz-tudo” do clã, o notório Fabrício Queiroz.
Desde então, o País tomou conhecimento, entre outros malfeitos, do “orçamento secreto”, esquema urdido no Palácio do Planalto para evitar o impeachment de Bolsonaro, e assistiu ao governo tomar uma nova forma: a submissão quase absoluta do presidente da República aos interesses do Centrão, grupo político que hoje é liderado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e por seu correligionário à frente da Casa Civil, o ministro Ciro Nogueira (PP-PI).
Essa parceria – chamemos assim – entre o governo e o Centrão tem se notabilizado menos pelas boas políticas públicas que poderiam advir de uma união de forças entre um Executivo e um Legislativo mais ciosos da realidade do País do que pelas suspeitas de corrupção que se sucedem a cada apuração de jornalistas que ousam não se dar por vencidos, a despeito dos fortes ataques de que têm sido vítimas.
Recursos do “orçamento secreto”, uma excrescência por si só, foram usados para comprar ônibus escolares superfaturados. Os veículos foram distribuídos de forma absolutamente antirrepublicana, privilegiando municípios governados por amigos – e até mesmo parentes – dos mandachuvas de turno. Depois, vieram os tratores, que, assim como os ônibus, foram adquiridos a preços muito discrepantes da realidade de mercado e por meio de convênios entre municípios escolhidos a dedo e a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). A Codevasf, aliás, é um capítulo muito peculiar na história da “parceria” entre Bolsonaro e o Centrão. Sob o atual governo, a chamada “estatal do Centrão” foi inchada a tal ponto que passou a abarcar projetos em cidades que distam até 1,5 mil quilômetros das águas dos rios que batizam a empresa.
No domingo passado, o Estadão revelou mais um esquema envolvendo veículos pesados: a compra superfaturada de caminhões de lixo. Após análise de mais de 1,2 mil documentos durante dois meses, o jornal constatou um aumento de 500% nas compras de caminhões de lixo pelo governo Bolsonaro. Novamente, Ciro Nogueira aparece no centro das apurações. Só a empresa de uma amiga do ministro-chefe da Casa Civil firmou contrato de quase R$ 12 milhões com a Codevasf para fornecimento de 40 caminhões de lixo. As compras são dissociadas de quaisquer políticas de saneamento básico. A título de exemplo, no Piauí, Estado de Ciro Nogueira, 89% dos municípios descartam os dejetos em “lixões” a céu aberto. Segundo especialistas, até os modelos dos caminhões, do tipo compactador, são inapropriados para municípios com menos de 17 mil habitantes, como são a maioria das cidades atendidas por essas compras.
Diante das informações que a imprensa apura e publica diariamente e das evidentes suspeitas de corrupção, cabe perguntar: o que pensa o procurador-geral da República?