Depois das eleições, pensei em voltar ao velho programa de leituras. Ilusão. As estradas foram bloqueadas, Bolsonaro demorou a reconhecer a derrota, multidões foram às portas dos quartéis pedir um golpe.
Antes de voltar aos livros, limitei-me a observar os estranhos discursos destes momentos no Brasil. No dia 8 de setembro de 2021, tentei viajar do Rio a Ilhéus e encontrei vários bloqueios na estrada. Lembro que, naquele dia, muitos caminhoneiros contavam com um golpe. Chegaram a comemorar abraçados na bandeira uma decretação de estado de sítio por Bolsonaro.
Nos dias posteriores às eleições, o tom não mudou. Vi imagens de pessoas ajoelhadas, rezando porque o ministro Alexandre de Moraes tinha sido preso; gente marchando desajeitadamente na frente de um tiro de guerra; gente cantando hino e fazendo uma saudação nazista. Vi até gente cantando o Hino Nacional em torno de um pneu. Seria uma homenagem à indústria automobilística? Um extremista abraçou-se a um caminhão e foi levado pela estrada, uma espécie de bloqueio ambulante.
Algumas frases são inesquecíveis: acossados pela polícia, manifestantes afirmavam que as eleições tinham sido compradas por Saddam Hussein. Em muitos lugares, a própria polícia aderia ao bloqueio.
Numa aparente sátira nas redes, uma jovem dizia: — Acabou a família, agora é Adão e Ivo, alugar bikes do Itaú e sair perseguindo cristãos.
Vejo nas imagens Cassia Kis ajoelhada no asfalto rezando com terço na mão. Ela está apavorada porque lhe disseram que nas escolas as crianças do mesmo sexo se beijam num espaço especialmente dedicado a isso: o beijódromo. As crianças criadas com mamadeira de piroca, na eleições de 2018, acabaram evoluindo para isso em 2022.
O Brasil não é só pitoresco. Nas estradas, além do dinheiro queimado com o bloqueio, grávidas estavam em trabalho de parto, crianças esperavam tratamento contra o câncer, portadores de doenças raras temiam a morte, e lamentavelmente um motorista transtornado atropelou manifestantes.
Todos esses episódios configuram para mim uma clássica reação da extrema direita ao resultado das eleições, uma espécie de Capitólio tropical, a réplica da tentativa de invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021.
Nos Estados Unidos, foi uma ação de vanguarda. No Brasil, a capacidade de mobilização foi maior. Mais de 800 pontos de bloqueio de estrada, com a média de 50 pessoas em cada, manifestações na porta dos quartéis em quase todos os estados do país.
Grande parte das frases que ouvi, por meio das reportagens, não exaltava o líder da extrema direita, mas condenava o eleito pela maioria.
Isso significa que o caminho do próximo governo será muito difícil. Há dificuldades econômicas para cumprir suas promessas e, ao mesmo tempo, uma necessidade imperiosa de não cometer erros.
Não há dúvida de que a direita veio para ficar, como diz Bolsonaro. Os princípios que enumerou — liberdade econômica, liberdade religiosa e liberdade de expressão — devem norteá-la. Não há menção, nesse pensamento, à solidariedade com os mais vulneráveis, nem uma pálida consciência dos limites da liberdade, por exemplo, a liberdade de destruir a Floresta Amazônica, contaminar os rios nas terras indígenas, disseminar notícias falsas.
Num processo de alternância, é possível a volta dessa direita ao poder. Nos próximos quatro anos, será necessário avançar no desenvolvimento sustentável da Amazônia, preservar os povos tradicionais, mas também fazer um grande trabalho de replantio nas áreas devastadas.
A direita brasileira, ao contrário de muitas outras no mundo, não reconhece as mudanças climáticas e vê a destruição da floresta como um dado do progresso.
No período em que esteve no poder, foi impossível conter o desmatamento. Além do replantio, é preciso usar o novo período para convencê-la do aquecimento global, dos eventos extremos do clima, enfim, não apenas adiar o apocalipse, mas tentar evitá-lo para as futuras gerações.
Não creio que a direita não se importe com as novas gerações. Mas a tendência é apenas garantir um futuro material confortável, sem associá-lo aos cuidados com o meio ambiente.
A volta aos estudos implica, entre eleições, evitar os erros que nos arruínam.
Fernando Gabeira, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com