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A obstrução à Saúde

As últimas manifestações do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em nome do governo a que serve, é um salto do plano da provocação e deboche para o da obstrução à saúde. Exigir prescrição médica individual para vacinação da população infantil é, na prática, impedi-la. É um AI-5 aplicado à liberdade paterna.

Bolsonaro se queixa do Supremo Tribunal Federal, mas provoca a sua intervenção de variadas formas. Decidiu impedir a vacinação infantil sabedor, por certo, de que haverá recurso judicial contra a posição do governo.

A prescrição imposta por seu ministro já existe – é coletiva e emitida pelas principais sociedades médicas envolvidas com o combate à pandemia: Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, Sociedade Brasileira de Imunologia, Sociedade Brasileira de Infectologia e Sociedade Brasileira de Pediatria.

Essas sociedades, que congregam os profissionais médicos de maior titulação e de capacitação técnica no país, participaram da análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que levou à aprovação da vacina da Pfizer, já largamente utilizada em outros países, para crianças entre 5 e 11 anos.

Mais ainda: o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), o Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde) e a própria Câmara Técnica de assessoramento do Ministério da Saúde, a Cetai, para assuntos de imunização em relação à pandemia apoiaram a decisão.

A informação é do presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, na entrevista mais reveladora do boicote permanente do governo ao combate da pandemia, dada ao jornal O Globo. Primeiro, atrasando a decisão, depois exigindo prescrição médica individual, entre outras ações de alto poder ofensivo.

Não é possível uma campanha com a urgência que requer a vacinação contra a Covid à base de receita médica. É inimaginável visualizar cada cidadão, principalmente os menos favorecidos, em filas nos hospitais públicos e postos de saúde em busca de receitas.

Se para os mais abastados isso pode ser apenas um pequeno transtorno, de obter receitas em consultas rápidas, para a maioria sem plano de saúde e acesso imediato a um médico, é impossível. O que torna a exigência de Queiroga uma condenação – para alguns uma sentença de morte – de cunho higienista.

O ministro da Saúde, título que agora se reveste de macabra ironia, parece ter perdido o rumo. Poucos meses no posto fizeram desaparecer o médico. Sua situação é mais grave que a do antecessor cuja especialidade era a logística e que se pautava pela hierarquia cega.

Antônio Barra Torres informa que 301 crianças na faixa de 5 a 11 anos morreram desde a chegada da Covid até o início de dezembro. Nesses 21 meses, numa matemática simples, explica ele, nós teríamos mais de 14 mortes de crianças ao mês, praticamente uma a cada dois dias.

Nesse contexto levar a questão a consulta pública em janeiro é aumentar essa estatística. Além de submeter o tema a leigos que em nada podem contribuir cientificamente para sustar as mortes, em confronto com a avaliação de fóruns ostensivamente habilitados para tal.

As fake news completam o boicote com desinformações como a de que a Anvisa ainda não completou seus estudos sobre a vacinação para o público infantil. Não só completou como indicou a medida já adotada em diversos países, que já somam mais de sete milhões de doses aplicadas.

Mas Queiroga considera que isso é pouco. Trabalha com uma estatística singular – não com vidas – para concluir que mais de 300 mortes de crianças não caracteriza emergência e, portanto, não impõe urgência. Não é o raciocínio de um médico. Ou já era assim e não se sabia, ou ficou assim e precisa ser interditado.

Bolsonaro, nesse macabro dueto com seu ministro, incita a violência contra os funcionários da Anvisa que trabalham em campo nos mais distantes pontos do país, exigindo a exposição de seus nomes. Não se trata de informação terceirizada, mas de fonte primária, ou seja, produzida pelo próprio presidente da República.

Contra-almirante da reserva e cirurgião vascular, o presidente da Anvisa é quem faz o alerta para consequência previsível: o Ministério da Saúde terá que explicar as razões pelo atraso da imunização do grupo, liberada desde a semana passada.

Queiroga está naquele momento em que deveria reavaliar sua conduta de médico e servidor público – a primeira, permanente; a segunda, passageira. Refletir sobre as consequências, senão por virtude, por sobrevivência. Afinal, se pôs a serviço de um governo cuja incitação à violência contra funcionários públicos já é investigada pela Polícia Federal.

Quanto ao almirante Barra Torres, pode se deduzir de sua conduta que o alinhamento das Forças Armadas ao governo Bolsonaro é de um grupo cada vez mais restrito.


João Bosco Rabello, jornalista

Fonte: https://www.metropoles.com