Terá a direita democrática no Brasil coragem política para se afastar do bolsonarismo? Um oportuno editorial do jornal O Estado de São Paulo lançou o desafio semanas atrás. Trata-se de uma questão existencial para a direita democrática brasileira, e importante para todos nós.
Por que se afastar do bolsonarismo requer coragem? Porque, pelo menos no curto prazo, o afastamento tem alto custo eleitoral. Que o digam os políticos que ousaram desafiar Jair Bolsonaro. Depois de criar o Bolso-Doria, o ex-governador de São Paulo está pagando com o ostracismo político a coragem que demonstrou ao enfrentar Bolsonaro em plena pandemia da covid. Tiveram o mesmo destino figuras de menor projeção, como os ex-parlamentares Joice Hasselmann e Alexandre Frota. A lista é extensa.
A ferocidade da extrema direita emergente contra políticos da direita tradicional não é exclusiva do Brasil. O que se vê aqui se assiste também nos Estados Unidos, onde o movimento Make America Great Again (Maga) faz caçada impiedosa aos membros do Partido Republicano que não se dobram ao mando brutal de Donald Trump.
Os métodos empregados tanto aqui como lá são conhecidos, com destaque para as campanhas de destruição da imagem dos adversários, convertidos em inimigos, por meio de uma máquina de ódio e notícias falsas que opera a toda potência, sobretudo no meio digital. A diferença está no fato de que aqui se fez uso de agências do Estado para essa finalidade, como ficou claro nas revelações recentes sobre a criação de uma Agência Brasileira de Inteligência (Abin) paralela.
Essa diferença pode estar com os dias contados, a julgar pelas promessas de Trump para o seu segundo mandato, entre as quais está a de empregar os instrumentos do Ministério da Justiça (Department of Justice) para perseguir os seus adversários políticos. Decisão recente da Suprema Corte, controlada por juízes alinhados à ala mais conservadora do Partido Republicano, serve de estímulo adicional à sanha de Donald Trump. A decisão ampliou a imunidade do presidente em relação a atos considerados “oficiais”.
Diante desse quadro, não é difícil entender o medo, para não dizer o pavor, que políticos da direita tradicional têm de enfrentar o líder da extrema direita e sua máquina de aniquilação política. No Brasil, vemos a todo instante os contorcionismos verbais, os silêncios obsequiosos, os recuos envergonhados daqueles poucos que, em raros momentos de coragem, ousam fazer um gesto ou dizer uma palavra que sugira uma eventual dissidência.
Não sou ingênuo a ponto de tentar convencer a direita brasileira a se arriscar em nome da valores superiores. Não faz parte da sua história colocar em risco a própria pele, com as exceções de quem se integrou à luta democrática contra a ditadura. Na realidade, em toda parte do espectro político, conta-se hoje nos dedos quem se disponha a correr o risco de cometer um haraquiri eleitoral em nome de princípios.
A submissão, porém, tem um preço alto. E Bolsonaro, assim como Trump, a quer total. Para alcançar esse fim, todos os meios se justificam, em particular a coação mediante chantagem. O bolsonarismo quer sequestrar toda a direita.
As revelações sobre a Abin paralela tornam o alto preço do sequestro mais visível do que nunca. A espionagem dos arapongas a serviço de Bolsonaro não poupou sequer aliados políticos do ex-presidente. O fato de que o próprio responsável imediato pela arapongagem, o delegado Alexandre Ramagem, tenha gravado a conversa que teve com Bolsonaro para tratar de proteger o Zero Um, o senador Flávio Bolsonaro, mostra o ambiente que caracteriza o entorno tóxico do ex-presidente. A paranoia e a exigência de submissão total extravasam os limites do núcleo duro e envenenam as relações políticas com e entre os “aliados” (valem as aspas porque não há lugar para aliança quando o objetivo é a submissão total).
Quer a direita democrática se reduzir à condição de refém? Pretende ficar à mercê do núcleo familiar do ex-presidente, que não se caracteriza propriamente pela estabilidade? As respostas a essas perguntas são do interesse geral do País. Não há democracia sólida sem uma direita comprometida com ela. O conservadorismo é parte necessária das opções políticas numa sociedade que valoriza o pluralismo. Serve para fazer o legítimo contraponto com os valores progressistas, em particular na área dos costumes. Uma mudança mais lenta que se consolida é preferível a uma mudança mais rápida que não finca raízes. Ser conservador não é o mesmo que ser reacionário nem muito menos negacionista. A coação e a chantagem não podem ser moedas de livre curso na vida política de uma sociedade civilizada.
No início do governo Bolsonaro, escrevi um artigo para a revista piauí com o título Que falta faz uma boa direita. Amigos conservadores me cobraram que escrevesse outro sobre a falta que faz uma boa esquerda. Bom ponto, reforçado a cada vez que ouço um líder do PT elogiar o Partido Comunista da China ou de Cuba. Mas hoje, no Brasil, como nos Estados Unidos, as ameaças reais à democracia vêm pela direita, e não pela esquerda.
Sergio Fausto, Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
Fonte: https://www.estadao.com.br/