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A naturalização do mal

Em pleno apogeu da pandemia um tema tem causado perplexidade nos mais variados segmentos da sociedade, refiro-me à naturalização da catástrofe sanitária e social que tem matado e feito sofrer milhares de brasileiros e brasileiras.

Não trata-se de um fenômeno novo, essa postura indiferente com o sofrimento do outro acompanha a sociedade brasileira há meio milênio.

A filósofa alemã, Hanna Arendt cunhou a frase “banalidade do mal” referindo-se a postura do nazista Adolf Eichmann ao justificar seus crimes ante o tribunal em Jerusalém.

Para ela, não se tratava de um portador do mal em si mesmo, mas alguém que considerava ser cumpridor de uma tarefa em obediência aos seus superiores como qualquer um outro ato burocrático.

Assassinar milhares de pessoas em câmaras de gás e carimbar memorandos, eram atividades similares para um burocrata proveniente de um ambiente em que a vida humana perdera o sentido.

O nosso olhar retrospectivo sobre a formação social brasileira nos ajuda a pontuar inúmeros acontecimentos que ajudaram a cristalizar uma subjetividade anacrônica nos tempos modernos, quando comparada ao padrão civilizatório iluminista propugnado pelo ocidente.

Desde o chamado descobrimento, a entrada triunfal dos portugueses dizimando os povos originários (indígenas), desta terra, das formas mais violentas, inclusive, com doenças. Para os portadores da “civilização” pré iluminista, aquele gesto era comum e banal.

Em nome da nova ordem, matar índio era algo de importância menor para quem se considerava superior. Com esse sentimento e indiferença com a vida humana, milhares de índios foram mortos e, ainda hoje, há milhares de brasileiros que defendem essa mesma prática no presente.

O regime escravocrata implantado nas américas, encontrou no Brasil, talvez, o ambiente mais propício para a sua instalação. Não foi por acaso que tenha sido um dos mais longevos.

O legado dessa experiência é que temos um dos países mais racistas na atualidade e o de maior desigualdade social. A insensibilidade dos brasileiros para com as estatísticas da fome, da degradante condição do sistema prisional, dos assassinatos praticados pela polícia contra os desvalidos, revela a incômoda presença dessa subjetividade responsável por hierarquizar a vida humana. Afinal de contas estamos falando, em grande medida, de pretos e pobres.

Em 2001, na alvorada do novo milênio – em pleno apogeu do neoliberalismo, sem a bipolaridade da guerra fria, Fukuyama já tinha cravado o fim da história – o Brasil ostentava a vergonhosa estatística de morrer uma criança de fome a cada 5 minutos. A grande mídia falava desse tema de modo residual e alardeava o lucro dos bancos, a subida da bolsa de valores, o saldo na balança comercial e o crescimento avassalador do agro negócio.

Os que morriam de fome ou precocemente de doença e ou assassinados pelo Estado, eram os descendentes dos habitantes das senzalas e que agora vivem, em sua maioria, segregados nas favelas e periferias.

Assim como o ambiente para a instalação do regime escravocrata no Brasil estava objetivamente dado, o mesmo pode ser dito para o neofascismo de Bolsonaro. A naturalização do mal em relação a vida humana e tudo ligado a ela, no caso brasileiro, a mudança ocorrida ao longo do tempo, é quase imperceptível.

O desmatamento e as queimadas na Amazônia, escandaliza a Europa culta mas, não mobilizam uma mísera passeata com uma centena de pessoas no Brasil. Essa mesma constatação é válida para a pandemia, há mais de um mês morrem mais de mil brasileiros por dia. Nesse mesmo período, o governo investiu apenas 30% do dinheiro que deveria ter gasto em saúde para salvar vidas.

Com números bem menos alarmantes do que esse, vários chefes de estado decretaram o lockdowm. Vidas humanas importam, de qualquer classe social.

A Pandemia já ceifou mais vidas do que as baixas de brasileiros somadas na Segunda Guerra Mundial e na Guerra do Paraguai (o conflito mais sangrento da História da América do Sul).

No dia 5 de maio o presidente da XP, Guilherme Benchimol, proferiu uma frase que traduz bem a subjetividade predominante na sociedade brasileira sobretudo na sua elite. Disse o jovem executivo “O pico de Covid-19 nas classes altas já passou; o desafio é que o Brasil tem muita favela”. Adicione-se a essa cusparada na cara da ralé, a frase do Empresário Roberto Justus, em áudio vazado: “quem entende de estatística sabe que a quantidade de mortes será irrisória…mesmo.

O entre os velhinhos, no máximo 10% a 15%” . O espaço é pequeno para tantas falas eivadas de impiedade, de uma elite que de tanto explorar acabou por odiar o povo do seu próprio país, como em nenhum outro tempo ou lugar.

A tortura mais conhecida da história do ocidente foi a que Jesus foi submetido. A maioria dos que dizem falar em seu nome, a exemplo dos pastores de linhas pentecostais, votaram em Bolsonaro – um confesso defensor da tortura.

O Brasil é o único lugar em que os militares são favoráveis ao alinhamento subalterno a outro país (EUA) como constituindo a defesa da pátria. O Brasil é a única nação em que a elite econômica não tem nenhuma caricatura de projeto, ainda que seja, de soberania e que a classe média mais se mobiliza em favor de seus algozes (elite) e contra o povo.

É imerso nesse conjunto de contradições que a esquerda se prepara para enfrentar as disputas desse ciclo conjuntural, que se encerra em 2022. É uma realidade marcadamente adversa e a única palavra de ordem que me ocorre é, unidade.

Todos os progressistas dos mais variados segmentos devem se unir para fazer a resistência e ato contínuo, ir para a ofensiva. Alguns céticos ou desavisados podem achar que é pura utopia, não é só eleição. É contra, principalmente, a banalidade do mal, já devidamente naturalizado numa sociedade que já dava claros sinais de possuir comorbidade bem antes da chegada do coronavírus.


Carioca Nepomuceno é professor de História na UFAC e Dirigente do PT/AC.