Tzu-chang perguntou a Confúcio: “Como um cavalheiro deve ser para que digam que ele conseguiu distinguir-se?”. O Mestre disse: “Que diabos você quer dizer com ‘distinguir-se’?”.
Tzu-chang respondeu: “O que tenho em mente é um homem que tem certeza de ser conhecido, sirva ele em um reino ou em uma família nobre”. O Mestre disse: “Isso é ser conhecido, não se distinguir. O termo ‘distinguir-se’ descreve um homem que é correto por natureza e que gosta do que é certo, sensível às palavras das outras pessoas e observador da expressão nos rostos delas e que sempre se preocupa em ser modesto. Por outro lado, o termo ‘ser conhecido’ descreve um homem que não tem dúvidas de que é benevolente, quando tudo o que ele está fazendo é mostrar uma fachada de benevolência que não condiz com suas ações”.
Ao palmilhar os caminhos de Confúcio, o norte-americano Michael J. Sandel, em seu livro “A Tirania do Mérito”, vai cuidar dos valores que inspiram a meritocracia. O autor contrapõe delicadamente a virtude e o vício no mesmo movimento de constituição dos comportamentos dos indivíduos nas sociedades contemporâneas. “Se meu sucesso é obra minha, algo que ganhei por meio do talento e trabalho duro, posso me orgulhar disso, confiante de que mereço as recompensas que minhas conquistas trazem. Uma sociedade meritocrática, então, é duplamente inspiradora: afirma uma poderosa noção de liberdade e dá às pessoas o que ganharam para si mesmas e, portanto, merecem. Embora seja inspirador, o princípio do mérito pode tomar um rumo tirânico, não apenas quando as sociedades não permitem que seja cumprido, mas também - especialmente - quando o fazem. O lado negro do ideal meritocrático está embutido em sua promessa mais sedutora, a promessa de autorrealização pessoal. Essa promessa vem com um fardo difícil de suportar. O ideal meritocrático coloca grande peso na noção de responsabilidade pessoal”.
Ao escolher essa forma de tratamento da meritocracia, Sandel evita os caminhos dos pensadores binários que separam o vício da virtude, o bem do mal. Ele mergulha esses dois conceitos nas profundezas do espírito que anima a vida concreta dos indivíduos-habitantes das sociedades contemporâneas, sempre enredadas na maldição de negar o que afirmam e de afirmar o que negam.
A busca pelo enriquecimento, pela diferenciação do consumo e dos estilos de vida é a marca registrada da concorrência na sociedade de massa. Os impulsos para acompanhar os hábitos, gostos e gozos dos bem aquinhoados esboroam-se nas angústias da desigualdade. A maioria não consegue realizar seus desígnios.
Sandel reconhece que, em sua configuração atual, as sociedades escancaram a incapacidade de entregar o que prometem aos cidadãos. A celebração do sucesso colide com a exclusão social promovida pela transformação tecnológica e pela migração dos empregos para as regiões de baixos salários.
A pressão competitiva-aquisitiva desencadeia transtornos psíquicos nos indivíduos-utilitaristas consumidores. Os trabalhos de destruição da subjetividade são realizados por uma sociedade que precisa exaltar o sucesso econômico e abolir o conflito. Nesse ambiente competitivo, algozes e vítimas das promessas irrealizadas de felicidade e segurança assestam seus ressentimentos contra os “inimigos” imaginários, produtores do seu desencanto. Os inimigos são os outros: os imigrantes, os pobres preguiçosos que preferem o Bolsa Família e recusam a vara de pescar, comunistas imaginários etc.
Aqui caberia recorrer a Freud para tratar do narcisismo dos ressentidos. Sigmund observa: “O narcisista parece ter realmente retirado sua libido das pessoas e das coisas no mundo exterior, sem tê-las substituído por outras em sua fantasia. Qual é o destino da libido retirada dos objetos na esquizofrenia? A megalomania, característica desses estados, indica a resposta... A libido subtraída do mundo exterior foi trazida para dentro do eu, emergindo assim um estado ao qual podemos dar o nome de narcisismo”.
Minhas deambulações curiosas me levaram à leitura do artigo dos psicanalistas Camila de Araujo Reinert e Matias Strass burger: “Um, Nenhum, Cem Mil” - Uma breve compreensão do narcisismo em Green através de um personagem literário de Pirandello e de um caso clínico”. Green é o psicanalista André Green, considerado um dos mais criativos herdeiros de Sigmund Freud. O artigo traz uma epígrafe copiada do Livro III das metamorfoses de Ovídio, o grande poeta romano.
“O adolescente (Narciso), cansado pelo esforço da caça e pelo calor, estendeu-se no chão, atraído pelo aspecto do lugar e pela fonte. Mas, logo que procura saciar a sede, uma outra sede surge dentro dele. Enquanto bebe, arrebatado pela imagem de sua beleza que vê, apaixona-se por um reflexo sem substância, toma por corpo o que não passa de uma sombra. Fica extático diante de si mesmo, imóvel, o rosto parado, como se fosse uma estátua de mármore de Paros. Deitado no chão, contempla dois astros, seus olhos, os cabelos dignos de Baco e de Apolo, o rosto imberbe, o pescoço ebúrneo, a linda boca e o rubor que cobre a cútis branca como a neve. Admira tudo, pelo que é admirado ele próprio. Deseja a si mesmo, em sua ignorância, e, louvando, é a si mesmo que louva. Inspira a paixão que sente, e, ao mesmo tempo, acende e arde. Quantas vezes beijou em vão a água enganosa! Quantas vezes, para abraçar o pescoço que via, mergulhou os braços na água, sem conseguir abraçar-se”.
Na aurora do século XXI, Elisabeth Roudinesco ausculta os rumores narcísicos cochichados nos bastidores da sociedade contemporânea. Diz ela que estamos sempre nos indagando o que preferimos: as figuras mais puras, as maiores, as mais medíocres, os maiores charlatães, as mais criminosas?
O sexo não é experimentado como o companheiro do desejo, mas como um desempenho, uma ginástica, como a higiene para os órgãos, o que só pode levar à confusão afetiva. “Qual é o tamanho ideal da vagina, o comprimento correto do pênis? Com que frequência? Quantos parceiros em uma vida, em uma semana, em um único dia, minuto a minuto?”. O avanço exasperado da “quantidade” encolhe o espaço de fruição da experiência amorosa. Não por acaso, estamos assistindo a um aumento nas queixas de todos os tipos.
Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, professor emérito da Universidade Federal de Goiás.
Fonte: https://valor.globo.com/