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A intentona golpista e os kids preto

A intentona golpista e os kids preto

É profundamente lamentável e, até mesmo inacreditável, que após quase quarenta anos do fim da ditadura militar, quando a sociedade brasileira, cansada de tantos arbítrios, truculências e corrupção, manifestou-se de forma veemente exigindo a redemocratização do País, as Forças Armadas voltem a se envolver na tentativa de um golpe contra o Estado Democrático de Direito.

Recentes reportagens investigativas publicadas pela Revista Piauí, aliadas aos dados que estão vindo ao conhecimento público pelos inquéritos que estão em curso na Polícia Federal, escancaram a participação de uma enorme parcela de militares, especialmente do Exército, na intentona golpista que culminou no fatídico 8 de janeiro. Sem dúvida, esse lastimável “evento disparador”, tão almejado e incentivado, jamais teria ocorrido sem a omissão, complacência e apoio dos militares. E todos sabiam que o objetivo desses criminosos era causar uma comoção social e pressionar as Forças Armadas a promover a intervenção militar, agindo contra a ordem constitucional e a democracia.

A reportagem da Revista Piauí afirma que a análise dos vídeos dos atos golpistas de 8 de janeiro demonstra ações próprias de pessoas que tiveram treinamento militar. As imagens demonstram ações coordenadas, com emprego de tática militar, de planejamento e de artefatos bélicos de uso exclusivo das FFAA. Quando chegaram à Praça dos Três Poderes, por exemplo, os golpistas dividiram-se em três grupos: um deles dirigiu-se para o Congresso, outro ao STF e um terceiro para o Palácio do Planalto, o que evidencia planejamento, uma vez que a tendência natural de uma multidão é caminhar unida, numa única direção.

Na realidade, a conspirata golpista foi gestada, em profundo desrespeito à soberania do voto popular e à democracia, desde o momento em que a Justiça Eleitoral declarou a vitória do presidente Lula. O ex-presidente e significativa parcela da cúpula das Forças Armadas, sem nenhuma prova ou evidência, passaram a questionar o resultado da eleição, notadamente o uso das urnas eletrônicas, assim como a atuação das autoridades da Justiça Eleitoral, numa atitude de “eleição boa é eleição a favor”. É dizer, o resultado só seria bom e correto se proclamasse a reeleição de Bolsonaro.

Incentivados por essas posturas, centenas de manifestantes indignados pela derrota de Bolsonaro, passaram a clamar por um golpe militar nas frentes dos quartéis. A concentração maior ocorreu em frente ao Quartel General do Exército em Brasília, área de segurança vedada a esse tipo de manifestação, de onde partiram as hordas que praticaram os atos terroristas – tentativa de explosão de carro com combustível nas proximidades do aeroporto de Brasília e depredações e tentativa de invasão da sede da Polícia Federal, quando foram incendiados 5 ônibus, 3 carros particulares e até uma viatura do Corpo de Bombeiros.

Esses manifestantes golpistas foram, sem dúvida, defendidos e incentivados pelos militares do Exército, que até mesmo impediram, antes da intentona golpista de 8 de janeiro, a atuação da Polícia Militar do Distrito Federal para dispersar os manifestantes alojados em frente ao Quartel General do Exército.

Isso não significa que a Polícia Militar do DF, em grande parte sabidamente bolsonarista, não tenha sido preliminarmente conivente com a intentona golpista de 8 de janeiro, ao facilitar o avanço dos manifestantes sobre as sedes dos Três Poderes da República.

Mesmo após os atos de vandalismo praticados em 8 de janeiro de 2023, quando ocorreram as depredações das sedes dos Três Poderes da República, os militares continuaram a defender os golpistas bolsonaristas. Tanto é que, na noite desses lamentáveis atos, já sob a intervenção do Governo Federal, as forças de segurança do Distrito Federal planejaram a prisão em massa de todos os envolvidos.

Nessa ocasião, por ordem do então Comandante do Exército, general Júlio Cesar Arruda, a PMDF foi impedida de acessar a área onde os golpistas foram concentrados, sendo confrontados por forças militares do Exército, até com o uso de tanques. Ao final das negociações, que envolveram o Comandante e três ministros do governo recém assumido – Flávio Dino, da Justiça; José Múcio Monteiro Filho, da Defesa; e Rui Costa, chefe da Casa Civil – ficou acordado que as prisões seriam efetivadas somente na manhã do dia seguinte. Tempo suficiente para que militares e seus parentes fossem avisados e fugissem do local...

Depois dos dados obtidos no celular do coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordem de Bolsonaro, não restam dúvidas de que o golpe foi detalhadamente planejado com a participação de militares de alta patente, da ativa e da reserva, a maioria deles do grupo dos chamados kids pretos, a força especial do Exército. De fato, tão logo chegou ao poder, Bolsonaro cercou-se dos kids pretos – única força que ele dizia confiar plenamente. Em sua gestão, Bolsonaro convocou pelo menos 26 kids pretos, entre eles o general Braga Netto, o general Luiz Eduardo Ramos, o tenente-coronel Mauro Cid, o general Eduardo Pazuello e o coronel Élcio Franco Filho.

A sorte é que, com as investigações e com os depoimentos nas CPIs, agora sabemos que os militares bolsonaristas são todos covardes: todos se apresentam como defensores da democracia e da ordem constitucional.

Mentem descaradamente sobre tudo. Mas, também sabemos que o golpe não se consumou, conforme a vontade de Bolsonaro e de muitos outros, porque boa parte do alto comando do Exército não demonstrou disposição para envolver-se numa aventura golpista de futuro incerto.

A verdade é que muitos brasileiros que lutaram pela redemocratização do país estão insatisfeitos com os resultados alcançados, especialmente com a atual desqualificada classe política. Mas isso não implica e nem se justifica que se queira derrubar a democracia. Ao contrário, todos devem continuar a luta pelo aperfeiçoamento da democracia, o que passa pela elevação da consciência da enorme parcela da sociedade que está excluída, social, econômica e politicamente, sobre a relevância da organização e participação popular.

O momento é propício para se corrigir equívocos do passado, promovendo-se uma profunda reformulação das Forças Armadas, mediante mudanças constitucionais que explicitem claramente a missão delas no Estado Democrático de Direito, de forma a evitar futuros eventos semelhantes aos ocorridos no passado recente.

Enquanto os militares não entenderem que não são um “poder moderador” não passaremos de uma “república de bananas”.

J.B. Pontes, geólogo, advogado e escritor

Fonte: https://gilvanmelo.blogspot.com/