Há uma regra de ouro para se interpretar o objetivo de projetos de lei em tramitação no Congresso, principalmente aqueles que mexem com regras eleitorais. É bastante simples: tome a justificativa do texto ou o parecer do relator, inverta o sinal das razões apresentadas e voilà, você descobre quais as verdadeiras intenções do legislador.
Veja o caso da minirreforma eleitoral que acabou de ser aprovada na Câmara, concebida por Arthur Lira e capitaneada pela novata deputada Dani Cunha (União Brasil-RJ), filha de Eduardo Cunha, “ilustre” ex-presidente daquela Casa e apoiada por todos os partidos, com exceção de Psol, Rede e Novo. Segundo as justificativas apresentadas, “não se trata de mudanças profundas”, mas “pequenos ajustes em questões pontuais”, voltado para gerar “um processo simplificado, informatizado e transparente”. O relator Rubens Pereira Júnior (PT-MA) foi além em seu parecer, dizendo que as novas regras “(I) prestigiam o elemento proporcional em nosso sistema eleitoral, (II) maximizam o princípio republicano, em sua dimensão relacionada ao dever de prestar contas na seara político-partidária, (III) promovem a igualdade substancial (material) de gênero, e (IV) fomento ao princípio democrático”.
Não se trata de nada disso. Muito pelo contrário.
Comecemos pela suposta “promoção da igualdade de gênero”. Apesar de terem sido dadas algumas migalhas de atenção às mulheres (como a liberação dos recursos partidários com antecedência e a possibilidade de utilizá-los para pagar segurança privada), no geral os resultados são francamente desfavoráveis às candidaturas femininas.
A exigência de que cada partido assegure pelo menos 30% de suas vagas para candidatas femininas agora passará a se aplicar para a federação como um todo, e não em cada integrante isoladamente. Isso significa que, no caso da federação PT-PV-PCdoB, Psol-Rede ou PSDB-Cidadania, os maiores partidos dessas parcerias (PT, Psol e PSDB) poderão lançar menos mulheres, relegando para os sócios minoritários (que têm menos estrutura e recursos) a tarefa de promover mais concorrentes femininas.
Com relação ao dinheiro, a cota de recursos dos fundos eleitoral e partidário para mulheres e negros agora poderá ser utilizada para o custeio de despesas comuns... com candidatos homens e brancos!
A nova legislação também tornará mais difícil responsabilizar partidos por fraudes à cota feminina com candidaturas laranjas, pois exige-se a demonstração de duas condições simultâneas: a não realização de atos de campanha e a obtenção de votação insignificante.
A proposta de Dani Cunha e seus colegas diz também que “as regras de prestação de contas foram simplificadas, buscando diminuir a burocracia e promover a adequação a avanços digitais”. Muito melhor seria afirmar que está liberado o vale-tudo com os bilhões do fundão eleitoral e do fundo partidário.
A prestação de contas parcial foi eliminada, o que dificultará bastante o trabalho da imprensa e da sociedade civil em monitorar o ritmo de arrecadação de recursos durante a campanha.
As doações de pessoas físicas agora poderão ser feitas via pix, mas os candidatos e partidos não mais precisarão prestar contas desse recebimento (o ônus passou para os bancos) e nem de emitir recibo pelos valores recebidos. Aliás, as doações estimáveis em dinheiro (serviços prestados ou a cessão de bens móveis e imóveis) também não precisarão mais de recibo. Também as despesas de caráter pessoal (o que isso quer dizer?) do candidato, se não forem bancadas pelos fundos partidário ou eleitoral, não precisam ser divulgadas.
Caso o PL nº 4.438/2023 seja ratificado pelo Senado, ficará oficialmente liberada no Brasil a compra de votos. De acordo com a proposta, bastará aos candidatos contratarem uma empresa de locação de mão de obra ou uma prestadora de serviços gerais, apresentar uma cópia do contrato e os comprovantes de pagamento que tudo o mais ficará acobertado por um verniz de legalidade.
Segundo o relator, a minirreforma também “maximiza o republicano”. Como a origem do termo “República” vem de “coisa pública”, a real intenção dos deputados com o PL 4.438/2023 seria, na verdade, maximizar seus ganhos privados, pois eles pretendem flexibilizar ainda mais o uso dos recursos públicos nas campanhas.
A novidade agora é autorizar o uso dos fundos partidário e eleitoral (R$ 6 bilhões em 2022) para comprar ou alugar automóveis, embarcações ou aviões, bem como gastar com sua manutenção e combustível.
A minirreforma também legalizou a compra da vaga de vice ou de suplente. A partir de agora, esses candidatos podem utilizar recursos próprios para financiar até 10% dos limites de gastos de campanha dos titulares da chapa.
E como se tudo isso não bastasse, os recursos do fundo partidário e do fundão eleitoral serão considerados impenhoráveis, dificultando os meios judiciais para que os partidos paguem condenações de natureza civil, trabalhista, penal ou tributária. É a blindagem financeira completa dos partidos políticos.
E esses são apenas alguns dos absurdos dessa nova legislação, aprovada a toque de caixa por Lira e que pretende ser empurrada goela abaixo do Senado, de Lula e de toda a sociedade nas próximas três semanas.
Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
Fonte: https://valor.globo.com/