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A ideologia bolsonarista

Centrada no conjunto de ideias que estrutura o bolsonarismo, vale ressaltar aspectos para que tenhamos uma visão mais abrangente desse fenômeno. Por mais que alguns insistam, talvez com certa dose de razão, que essas “ideias” não sejam propriamente ideias dado o seu caráter tosco, são elas que orientam as ações de seus militantes, que se comprazem histericamente em gritar: “Mito!”.

Note-se, preliminarmente, que os aspectos assinalados da ideologia bolsonarista não se restringem à extrema direita, mas são igualmente válidos para a extrema esquerda, configurando um tipo de autoritarismo ou totalitarismo cujas consequências são as mesmas na dominação da sociedade e no controle ou aniquilamento das liberdades. Eis por que autores como Hannah Arendt incluem na análise do totalitarismo tanto o nazismo quanto o comunismo. Se agora nos detemos mais no caso da extrema direita, é por ser ela a experiência concreta que o País está vivendo.

Subversão da democracia – Um aspecto importante desse fenômeno reside na subversão da democracia por meios democráticos, as eleições sendo usadas como instrumentos para corroer suas instituições e seus valores. Hitler conquista o poder por meios democráticos visando a destruir as próprias instituições republicanas. Chávez conquista “democraticamente” o poder, para eliminar progressivamente todas as instituições democráticas da Venezuela, hoje destruída e exaurida. O presidente Bolsonaro, por sua vez, está sempre testando os limites das instituições democráticas, erodindo seus valores e princípios, embora se diga o seu defensor. Quando convoca as Forças Armadas para defenderem a democracia, faz jogo duplo: o de defensor das liberdades e o de seu verdugo.

Militares – A convocação dos militares é elemento constitutivo de um discurso que busca criar condições para que eles, junto com as forças policiais, passem a responder a ele, e não à Constituição, com o intuito de estabelecer uma relação direta com eles, e não mais unicamente pela hierarquia militar. Há o menosprezo da representação. O presidente gasta boa parte do seu tempo em comemorações militares dos mais diferentes níveis, que não seriam, em condições normais, afeitas à posição de um presidente. Os comandantes militares seriam as pessoas que naturalmente deveriam presidir tais cerimônias. Uma vez que sempre procura comparecer a tais eventos, tem como objetivo chamar a si as pessoas homenageadas, estabelecendo uma relação direta com elas, independentemente de seus superiores hierárquicos.

Trata-se de um meio de também manter os comandantes sob controle, ao mostrar que pode deles prescindir. É um empreendimento difícil nas Forças Armadas, por serem elas hierárquicas e ordenadas, apesar de um suposto chamamento à tropa embutido em tal comportamento, embora o caso não seja o mesmo em algumas Polícias Militares, cuja cadeia de comando é fraca, além de pouco estruturada em torno de valores. Aí as chances do bolsonarismo germinar são maiores, o que explicaria a atual tentativa de uma reorganização das forças policiais, tirando o poder dos governadores e estabelecendo uma forma de coordenação nacional, à revelia das Forças Armadas.

Milícias – Se o bolsonarismo conseguiu com êxito criar uma milícia digital, não se pode dizer o mesmo da criação de um partido, cuja tarefa seria a de estruturar seus adeptos em grupos organizados, que responderiam a vozes de comando paramilitares. Nota-se uma desorientação do bolsonarismo nesse sentido, visto que, no afã da família Bolsonaro de tudo controlar, dividiu e fragmentou um partido eleitoralmente vitorioso, o PSL. Saindo vencedor das últimas eleições, foi vítima da tentativa bolsonarista de tudo dominar, nem aceitando o compartilhamento do poder. Sua orientação de extrema direita, sem uma estratégia correspondente, conseguiu minar a si mesma. O que teria sido um instrumento seu de poder, terminou sendo seu óbice, com as desorientações partidárias daí derivadas. Até hoje não sabe o presidente por qual partido se candidatar em 2022, seu maior, se não o único, objetivo.

Idiotas – O vídeo de ampla repercussão em que o presidente da República, numa tirada sua característica, totalmente imprópria para uma figura presidencial, manda a imprensa pôr uma lata de leite condensado “naquele lugar”, de eliminação fisiológica do corpo, com odor fétido, exibe em toda a sua “pureza” o desprezo pela liberdade de imprensa, sua profunda aversão à crítica e ao outro em geral. Mais surpreendente ainda, contudo, é que, ladeado pelo ministro das Relações Exteriores, a sua plateia, em delírio, grite: “Mito! Mito!, Mito!”. Enseja pensar por que um discurso tão tosco e grosseiro ainda encontra quem o acolha, pois quem assim o faz age como idiota, como se habitasse outro mundo. Talvez isso explique o comparecimento do chanceler, pois é como se ele estivesse numa terra estrangeira.


Denis Lerrer Rosenfield professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Artigo transcrito do jornal O Estado de S. Paulo 

Fonte: https://www.estadao.com.br/