A decisão veiculada pela imprensa, em 30 de setembro último, sobre a absolvição de um homem que, em 2016, tentou matar a ex-mulher a facadas por “legítima defesa da honra”, surpreendeu-nos com revolta e indignação, colocando-nos em reflexão por parte da advocacia que prima pelo não retrocesso ao direito de defesa e à sordidez da fundamentação que a enseja. A questão em discussão não se baseia na punição, e sim no pensamento retrógrado que busca abonar a violência contra a mulher em suas várias vertentes.
O sistema penal é seletivo, e o recrudescimento das penas não resguarda a vida e a integridade física e psicológica das mulheres. Logo, o texto não se trata à relativização das garantias penais, tampouco se furta à extrema gravidade ao observar-se que nossa sociedade tolera a morte de mulheres em detrimento ao ego frágil de um homem, da ausência de política pública para o diálogo e o acolhimento de homens e suas masculinidades.
Todos os dias mulheres morrem vítimas do machismo, e a resposta que se dá a essa situação é através do júri popular nos casos de indícios de dolo na conduta praticada. O júri, formado por cidadãos, reflete a opinião pública e expressa a essência da nossa escolha democrática.
Na Constituição de 1988, nossa sociedade reconheceu a vida como bem jurídico de maior relevância e o detentor do poder, o povo, como julgador nos processos de quem atentar contra esse bem. Há muitas críticas sobre a ausência da formação técnico-jurídica dos jurados populares, porém não são o foco desse debate.
Na década de 1970 houve grande repercussão e rechaço, por parte de feministas e juristas, à pseudotese sobre “legítima defesa da honra”, cuja construção pífia remonta à culpabilização da mulher e à tolerância ao homem ofendido em sua masculinidade. À época Carlos Drummond de Andrade escrevera sobre um dos casos: “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”. Em pleno 2020 temos como pauta no Judiciário a “honra da mulher”; parece um déjà vu, mas não é! Diante de tantos retrocessos vivenciados no país, não podemos nos abster de que esse pensamento é estrutural, alavancando o machismo enraizado na cultura patriarcal e julgando comportamentos, escolhas e liberdades das mulheres do Brasil e do mundo.
Espera-se que o/a jurista não se valha do machismo estrutural; logo, no júri, que não é técnico —ainda que fosse, isso não o exime, pois as violências estruturais prescindem de diploma para combatê-las—, a ausência de expertise inviabiliza elementos concretos para a análise de uma construção oportunista, de valer-se de uma falácia a sustentar um suposto argumento à absolvição.
O ordenamento jurídico já traz os institutos próprios de defesa, que não utilizam uma narrativa perniciosa para resguardar a subjetividade masculina, com o fim de afastar a responsabilização por suas ações para fazer valer um instituto que nem existe e que não se sustenta como teoria, tampouco na doutrina.
Mais uma vez, observa-se o rompimento do pacto civilizatório, numa retomada da barbárie, consistente na culpabilização da vítima para justificar o ato ilícito de quem exterminou sua vida.
O machismo, assim como as demais violências estruturais, deve ser pauta central a compreender todas as violências e o modo de preveni-las e combatê-las, observando-se também as sofridas pelo viés interseccional de raça, classe, gênero e sexualidade.
Já passou da hora de o homem renunciar ao tabu de se compreender por machista, pois essas violências são estruturantes —não é uma questão intrinsecamente de caráter. O primeiro passo para evitar sua ocorrência é admitir que potencialmente as possui, pois, novamente, são elas estruturais e estruturantes.
Sejamos agentes que provoquem a reflexão, quanto ao conceito de mulher pessoa humana livre, para que os princípios culturais e patriarcais sejam colocados em xeque a cada mulher que for atacada e subjugada nesta sociedade criada e mantida para proteger e manter os homens no alto de seus privilégios.
Claudia Patrícia Luna Silva
Conselheira seccional e presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-SP
Viviane Ornellas Pereira Cantarelli
Presidente da Comissão de Justiça Restaurativa da OAB-SP
Gabriela Sequeira Kermessi
Membro efetivo das comissões da Mulher Advogada e do Acadêmico de Direito da OAB-SP
Simone Henrique
Vice-presidente da Comissão Especial da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil da OAB-SP