A batalha em torno do Projeto de Lei 2.630 — conhecido como PL das Fake News — é somente a primeira parte de um capítulo decisivo de nossa História democrática. O vertiginoso desenvolvimento da comunicação digital tem afetado seriamente o processo político democrático brasileiro há pelo menos uma década. Junho de 2013, a organização política da extrema direita e a consequente vitória de Bolsonaro em 2018 foram somente os marcadores mais visíveis dessa História recente.
Em 2022, uma nova catástrofe foi por pouco evitada, mas isso se deveu mais à virtude de alguns atores políticos, notadamente à determinação do ministro Alexandre de Moraes no comando do Tribunal Superior Eleitoral e à imensa popularidade e habilidade política de Lula, do que propriamente à solidez de nossas instituições perante as ameaças postas pela manipulação dessas novas tecnologias da comunicação.
Há um descompasso sério de temporalidades aqui. As instituições demoram para ser adaptadas a fim de enfrentar novas realidades. Do outro lado, contudo, as tecnologias digitais evoluem em passo acelerado, de um ano para o outro, em questão de meses. Foi o “golpe” da Cambridge Analytica usando o Facebook, depois veio a técnica do firehosing por meio do WhatsApp, temos a já “velha” conhecida monetização dos produtores de fake pelo YouTube, e hoje, com a multiplicação das redes sociais, são várias as ameaças à saúde da comunicação política: tudo ao mesmo tempo e misturado. Esse estado de coisas apresenta um desafio enorme à regulação.
Contudo o problema é ainda mais grave, pois isso tudo já é visão retrospectiva. Como regular o que está por vir ou o que está sendo gestado neste momento? Refiro-me aqui à inteligência artificial de última geração e à maneira cataclísmica como ela hoje atinge o mundo digital. Entre as inúmeras promessas e ameaças que ela representa, uma é particularmente sensível à comunicação política: a proliferação de deep fakes, os vídeos falsos que trazem representações da realidade manipuladas, mas imperceptíveis.
Os deep fakes já existiam, mas eram muito difíceis de produzir, e o resultado final nem sempre era convincente. O rápido desenvolvimento da inteligência artificial tornou simples e barato reproduzir imagens em movimento e áudio à perfeição.
Agora, imaginemos o cenário de uma campanha política inundada por vídeos falsos, em meio à qual é impossível ao eleitor ter certeza de que a informação recebida é minimamente confiável. Claro que isso já acontece em alguma medida nos dias de hoje, mas as coisas podem piorar — e muito.
A conclusão a que devemos chegar é simples: para aqueles que defendem o regime democrático, a solução é regulamentação ou regulamentação. Não existe alternativa, tampouco garantia de que será suficiente para nos preservar. Mas não trilhar esse caminho é renunciar ao já frágil sistema representativo que temos. As alternativas a ele já se apresentam no Brasil e no mundo, e todas elas são aterradoras.
João Feres Júnior é professor titular de ciência política no Iesp/Uerj
Fonte: https://oglobo.globo.com/