Quem percorre as ruas de Montevidéu com os olhos atentos vai ver algo mais do que jovens fumando tranquilamente seus cigarros de marijuana pelas praças da cidade. Vai perceber também crianças e adolescentes que levam consigo pequenos computadores portáteis que receberam em suas escolas.
O Uruguai ficou famoso por permitir o cultivo de pequenas quantidades de maconha e a compra do produto em farmácias. Mas existe um lado menos conhecido de sua revolução silenciosa: uma iniciativa de 2017 que garante a cada criança que ingressa no sistema escolar um computador pessoal com conexão gratuita à internet.
Trata-se do Plano Ceibal, estabelecido durante a primeira gestão do presidente socialista Tabaré Vázquez, da Frente Ampla, mas mantido ainda hoje pelo governo conservador do presidente Luis Lacalle Pou. Um caso raro de política pública mantida ao longo dos anos.
Vázquez foi sucedido por Pepe Mujica, em cujo governo se deu a liberação do uso da maconha. E coube a Mujica, há poucos dias, apresentar o ex-presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva a uma multidão reunida na Plaza de Mayo, em Buenos Aires, para celebrar os 38 anos da volta à democracia na Argentina. Era o festival Democracia para siempre.
“Já tive muitos ofícios, mas hoje assumo o ofício de apresentar o querido amigo e companheiro Lula, que vai ser o presidente do Brasil”, disse Mujica, que dividia o palanque com o presidente argentino Alberto Fernández e sua vice, Cristina Kirchner.
Trajando uma gravata azul, verde e amarela, Lula levantou-se, beijou a cabeça de Mujica e se dedicou ao que mais gosta: falar a um grande público. A festa tinha muito de simbólico. Dividiam o palanque representantes de uma geração de políticos que chegaram ao poder após a queda de regimes militares autoritários em quase toda a América do Sul.
Esses políticos foram portadores de sonhos de liberdade e, também, de redução das enormes desigualdades sociais que existiam e ainda existem no subcontinente. Lula aderiu ao clima emotivo apresentando seu próprio balanço das últimas décadas.
“Tive a felicidade de governar o Brasil no mesmo período em que Kirchner e Cristina governaram a Argentina, em que o companheiro Hugo Chávez era presidente da Venezuela, o nosso índio Evo Morales era presidente da Bolívia, quando Tabaré e depois Mujica governaram o Uruguai, quando Lugo governou o Paraguai, Bachelet e Lagos presidiram o Chile e Rafael Correa comandou o Equador”, enumerou.
“Esses companheiros progressistas, socialistas e humanistas fizeram parte melhor do momento de democracia de nossa pátria grande, a querida América Latina”, avaliou.
Lula foi além e fez um especial agradecimento a Fernández, que, ainda candidato, o visitou na prisão, em Curitiba. Nesse momento, recorreu ao vocabulário típico do período dos regimes militares. “Ele teve coragem de ir à cadeia me ver mesmo depois de eu dizer que talvez não fosse prudente visitar um preso político durante a campanha eleitoral”.
Lula deixou a cena aclamado pela multidão assegurando que, aos 76 anos, ainda tinha a “energia de um jovem de 20”.
Energia, talvez. Popularidade, com certeza. Mas a renovação, que marca a juventude, parecia um pouco distante. Lula citou o período em que governou junto a seus colegas como um sonho que passou. De fato, os números demonstram que a região experimentou crescimento e distribuição de riqueza no início dos anos 2000. Mas nem tudo seguiu bem.
Na Argentina dos anfitriões da festa, a inflação ronda os 50% e a pobreza alcança quase metade da população. A experiência de Chávez levou a Venezuela a se tornar um dos países mais pobres da região. Morales foi “aconselhado” pelos militares a renunciar após iniciar um quarto mandato que contrariava a decisão anterior de um referendo.
Nesse começo da década de 20 do novo século, os mesmos objetivos que levaram ao poder a geração de líderes de esquerda da qual participou Lula permanecem atuais: a defesa de democracia, o crescimento econômico e a redução das desigualdades. Agora temperados pelo combate à pandemia e pela defesa do meio ambiente.
É bastante compreensível, por isso, a emoção que marcou a manifestação na Plaza de Mayo. Mas quais são as respostas da esquerda aos desafios atuais?
Até hoje, a Argentina debate se firmará acordo com o Fundo Monetário Internacional e se abre ou não a economia. E não se conhecem as propostas de Lula para um novo mandato. Ele repetiria as apostas na exploração do pré-sal e nas empresas campeãs nacionais?
Por tudo isso, talvez seja interessante voltar mais uma vez os olhos ao Uruguai, onde algumas políticas públicas inovadoras foram mantidas mesmo depois da derrota da esquerda há dois anos. O país aposta em energias renováveis, como a dos ventos, e estuda seu ingresso na era do hidrogênio verde, que vai mover veículos e indústrias no futuro próximo.
Instalou fibras óticas em todo o país e, com base em boa infraestrutura de internet, levou ao interior os mesmos computadores portáteis que já estavam em mãos de meninos e meninas em Montevidéu.
Os resultados começam a aparecer, lentamente como costuma acontecer. Um documentário recém-lançado, intitulado Soñando Robots, mostra a transformação das vidas de adolescentes uruguaios, mesmo nas vilas mais isoladas, depois de manterem contato com kits de robótica distribuídos por todo o país, dentro do mesmo Plano Ceibal.
Não era algo que se identificava como tipicamente uruguaio, como lembraram os organizadores ao lançar o filme, mas a inovação começa a fazer parte da paisagem local. Onde isso vai levar? É difícil saber. Mas parece uma aposta consistente na inovação e na mudança.
A emoção do público presente à manifestação pelos 38 anos do retorno da democracia à Argentina demonstra que a região evoluiu após a posse de governantes eleitos, muitos dos quais ligados a ideais progressistas. Os desafios do presente, porém, parecem ampliados. E a esquerda precisa apresentar a sua visão de futuro.
Marcos Magalhães, jornalista
Fonte: https://capitalpolitico.com