Foi mais fácil para o presidente Jair Bolsonaro sumir com Fabrício Queiroz, seu amigo há mais de 40 anos, empregado por ele na Assembleia Legislativa do Rio para cuidar do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, do que sumir com os números que contam a história do coronavírus no Brasil.
Ao dar-se conta, ontem, de que o ministro Alexandre de Moraes fora sorteado para analisar no Supremo Tribunal Federal ação apresentada por partidos que pedia a divulgação completa dos números que o governo passara a esconder, Bolsonaro liberou o Ministério da Saúde para dar marcha ré.
Antecipou-se, assim, em algumas horas à decisão do ministro favorável ao pedido dos partidos. O que ganhou Bolsonaro quando proibiu o ministério de revelar os verdadeiros números sobre a tragédia da pandemia? Nada, só perdeu. Piorou sua imagem no resto do mundo. Expôs o país ao descrédito internacional.
Era tão difícil imaginar que o resultado seria esse? Faltou alguém ao lado do presidente para aconselhá-lo a não atravessar a rua mais uma vez para pisar numa casca de banana? As coisas não funcionam desse modo no Palácio do Planalto ocupado por um ex-capitão impermeável a opiniões contrárias e generais obedientes.
Esquizofrênico por natureza, ditador por vocação, Bolsonaro, primeiro, construiu uma narrativa – a de que os governadores inflam o número de mortos pelo vírus para arrancar dinheiro do governo e, mais tarde, jogar a culpa nas costas dele. Em seguida, empurrou-a goela abaixo dos generais. Foi a parte mais fácil.
Na maioria das vezes, ele e os generais pensam da mesma maneira. Quando não pensam, os generais se curvam às vontades do chefe. De mais a mais, como generais da reserva à exceção de dois, foram beneficiados por decreto de Bolsonaro que concedeu um bônus de 30% sobre o soldo que o Exército lhes paga.
Não é uma quantia desprezível. Ao soldo com o bônus, soma-se o salário que recebem como ministros de Estado. Fora as demais vantagens que o cargo lhes confere. Carro, motorista, moradia para os que precisam e prestígio social. Nada que se despreze. Tudo que possa distingui-los dos colegas da reserva.
Foi o empresário Luciano Hang, dono das lojas Havan, que enviou um vídeo a Bolsonaro sugerindo mudanças no boletim diário do Ministério da Saúde que retratava o aumento do número de mortos e de infectados pelo vírus. Bolsonaro gostou da ideia. O general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde, também.
O próximo a gostar foi o coronel Elcio Franco Filho, secretário-executivo da Saúde. O que restou da antiga equipe técnica do ministério não gostou nem um pouco. Mas ela já não tem poder no ministério. O poder está nas mãos do general, do coronel e de uma dezena ou mais de militares recém-empregados ali.
Hang responde a processo no Supremo Tribunal por suspeita de ter ajudado a financiar a rede bolsonarista de fabricação de notícias falsas. Parte das despesas de campanha de Bolsonaro foi paga por ele. Recentemente foi alvo de uma operação de busca e de apreensão da Polícia Federal. Mas, e daí? Bolsonaro é seu amigo.
O que está por vir que possa causar mais turbulência dentro do Ministério da Saúde? No cercadinho do Palácio da Alvorada, Bolsonaro ouviu de uma devota que ela conversa com Deus desde quando era criança e que sabe como curar o coronavírus. Disse que está disposta a servir de cobaia para comprovar o que afirmou.
“Tenho 38 anos, sou mãe de três filhos, eu não estou aqui para brincadeira. Deus fala comigo desde os seis anos. Deus quer mudar esse país”, proclamou a mulher. “Não preciso que acredite em mim. Preciso que me ponha a prova. Podem injetar o vírus em mim. Eu assumo todas as responsabilidades”.
Bolsonaro ficou tão impressionado com o testemunho de fé que logo garantiu “Eu te arranjo amanhã para a senhora conversar lá, alguém para conversar com a senhora no Ministério da Saúde. Pode ser?” A mulher concordou. O nome dela e seu endereço foram anotados por um ajudante de ordens do presidente.
Hoje, podemos ter novidades sobre a cura do vírus que já matou 397.380 pessoas no mundo e que continua desafiando o conhecimento acumulado por todos os cientistas do planeta.
Ricardo Noblat, jornalista