Final da década de 1980. Ramais cortam áreas da terra indígena Apyterewa, no rastro da exploração ilegal de mogno. Indígenas de recente contato, os parakanãs assistem à invasão de seu território e iniciam uma luta pela proteção de suas terras —que é uma luta pela própria vida.
E que ainda não venceram, apesar de uma série de mobilizações e batalhas judiciais. Em 2007, derrotando inúmeras tentativas de políticos de interferir no processo, a Apyterewa foi finalmente homologada pelo governo federal. Mas nem a homologação foi capaz de assegurar a proteção do território parakanã. Hoje, eles ocupam apenas 20% das próprias terras e convivem com o barulho de grandes máquinas de garimpo, motosserras, tratores e a fumaça constante das queimadas.
Projetos desenvolvimentistas que avançaram na Amazônia nos primeiros 15 anos do século 21, sem consulta prévia, livre e informada aos povos afetados, explicam em parte a atual situação da Apyterewa.
Apesar de ações do Ministério Público Federal apontando os vícios e riscos do projeto da usina de Belo Monte, em 2010 a licença prévia foi expedida. Entre as condicionantes, um plano de vigilância e fiscalização das terras indígenas afetadas, com instalação de postos de vigilância em regiões estratégicas, incluindo a desintrusão da Apyterewa, com retirada de todos os ocupantes não indígenas.
A desintrusão até hoje não foi concluída. As bases de proteção territorial só foram construídas em 2016 —e apenas algumas das originalmente previstas. Enquanto Belo Monte funciona a todo o vapor, os parakanãs vivem hoje confinados na menor porção de seu território.
A situação extrema que os parakanãs suportam com os impactos de Belo Monte se agravou a partir de 2019. Com a eleição de Jair Bolsonaro, suas declarações elegendo indígenas como inimigos da pátria e a desestruturação fiscalizatória promovida pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, a impunidade e a expectativa de regularização das terras griladas deram combustível para criminosos intensificarem as atividades ilegais na Amazônia.
A região do médio Xingu, no Pará, é uma das mais afetadas. Ituna Itatá, Apyterewa, Cachoeira Seca e Trincheira Bacajá registraram em 2019 índices alarmantes de desmatamento, com aumentos percentuais em relação ao ano de 2018 de 754,24%, 434,77%, 113% e 271,93%, respectivamente.
É nesse cenário desalentador de invasões nas terras indígenas que a chega a pandemia de Covid-19. Temerosos do genocídio e da omissão sistemática de diversas instituições do Estado, a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), em conjunto com seis partidos políticos, ajuizou ação no Supremo Tribunal Federal buscando medidas que contenham o avanço da doença. O STF concedeu liminar obrigando o governo a tomar medidas de proteção, mas não compreendeu a urgência de retirar os invasores, falhando uma vez mais em proteger os territórios e as vidas indígenas.
A chegada avassaladora da pandemia para os povos indígenas revela a vulnerabilidade a que tem sido expostos e a conexão autoevidente entre a desproteção dos territórios e o risco concreto de genocídio. Os povos indígenas estão fazendo o chamado. Não cabe a nós calar.
Marcia Zollinger, Procuradora da República, é mestra em direito pela UFPR e Helena Palmquist, Mestra em antropologia pela UFPA e assessora do Ministério Público Federal
Fonte: https://www.folha.uol.com.br