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A desordem como estilo

Thomas Jefferson e Benjamim Franklin tiveram, pelo menos, um grande debate conceitual na construção do Estado e da Nação americana. “Igualdade política, direitos naturais e soberania do povo. Consideramos estas verdades sagradas e inegáveis”, escreveu Jefferson, então com pouco mais de 30 anos, em 1776, em um rascunho da Declaração de Independência dos EUA. Iluminista refinando, calvinista convicto, polímata, com mais de 70 anos, Franklin leu o texto do companheiro da bravura republicana moderna sublinhando um pequeno reparo: ao invés de “sagrado e inegável” ponderou que “essas verdades” seriam “auto-evidentes”.

Pontuava-se ali a dimensão adequada e necessária para a constituição, na partida, de um Estado laico, construído pela vontade e pela razão humana. Verdades sagradas são graças divinas, concedidas por Deus portanto próprias do mundo religioso. As verdades evidentes, como queria Franklin, eram fruto da ciência, da experiência histórica, dos experimentos humanos, do empírico e observável.

O diálogo entre a Fé e a razão não havia se iniciado ali e nem terminaria entre aqueles dois gigantes das américas. Deus, como anunciou o cristianismo, sempre esteve em toda parte, na aura humana e das civilizações. Mas Ele nunca quis retirar dos homens a vontade edificante que sempre pode ser revestida pela virtude, emprestando majestade ao que é próprio do sagrado e do transcendente.

Revisitei essa cena exuberante da história moderna no livro seminal da historiadora americana Jill Lepore “Estas Verdades a História da Formação dos Estados Unidos”, ao acompanhar o debate no Supremo Tribunal Federal sobre a liberação ou não para a realização de cultos religiosos no País diante da expansão exponencial das contaminações e mortes vítimas do convid-19 e da absoluta falência do nosso sistema de saúde, público e privado.

A intervenção do Advogado-Geral da União, André Mendonça, e dos advogados que defendiam o pleno funcionamento dos templos e igrejas, pelo menos por um momento, trouxe para a degradada pauta contemporânea da política brasileira a discussão entre o que é um Estado laico e um Estado religioso e suas severas consequências se essa separação não for devidamente compreendida e aplicada.

Certamente inspirado pela mesma cena, o embaixador Rubens Barbosa, sempre com notável consistência e elegância, fez publicar no jornal O Estado de São Paulo da última terça-feira, um artigo – Questão Religiosa – prenhe de advertência e oportunidades diante das dimensões apavorantes da crescente disfuncionalidade das nossas instituições.

“A perplexidade aumenta na medida em que, entre outros exemplos, se verifica a maneira como a grave crise do combate à convid-19, fora de controle, está sendo conduzida; pela ameaça de um enfrentamento fratricida pela facilitação da venda e do porte de armas e munições; pela inexplicada crise militar com a demissão da cúpula da Defesa; pelo desmonte do combate à corrupção; pela crescente influência das milícias e do tráfico de drogas; pela chocante visibilidade da desigualdade social; pela falta de perspectivas e de uma visão de futuro para o País.

A tudo isso se junta agora a surrealista discussão sobre atividades religiosas coletivas em tempos e igrejas durante a pandemia”, observa Rubens Barbosa nos remetendo ao horror que nos aguarda se nada for feito.

Essa dolorosa realidade se agiganta temerariamente quando constatamos que, que com raras e pontuais exceções, nossas intuições estão absolutamente de costas para a Nação assim como nossos endinheirados da hora – não podemos falar de elite porque nunca a tivemos de fato – sequer entendem ou pensam o que é e o que seria um País chamado Brasil. Sem limites e alheio às urgências do País, o Congresso teve a pachorra de elaborar um Orçamento inaplicável.

É uma peça tão grave e desconcertante que o presidente da República e seu vice foram aconselhados a deixar o País, legando ao presidente da Câmara, Arthur Lira, a responsabilidade jurídica e política de assinar e validar o Orçamento previamente condenado.

Ainda na fervura do Orçamento escandaloso, o ministro Roberto Barroso, do STF, determina a instalação da CPI que vai investigar as ações da União, e agora dos estados e municípios, no combate à covid-19. Bolsonaro, com o apoio da sua trupe militar e civil, reage quase ensandecido, ameaça e agride parlamentares e instituições, se deixa gravar num diálogo escatológico com o senador Kajuru com termos absolutamente impróprios, tanto para ele, como presidente da República, como para Kajuru, um senador da República.

No meio da tormenta, o sempre falante general Mourão, vice-presidente da República de plantão, retomou seu habito de vociferar aleivosias, em desconcertantes defesas dos embates do capitão presidente com as instituições. Ainda não parece claro, mas tudo sugere que o general quer ser a voz sombria, ainda que dúbia, dos canhões, baionetas e quarteis supostamente perfilados em apoio à Bolsonaro.

Enquanto esse ritmo alucinante de impropérios anima e agita os poderes da República, as necessidades do País, a gestão devida e adequada para as nossas crises sanitárias e econômica parecem esquecidas. Há um não fazer, um silêncio cúmplice com a tragédia, um descaso deliberado com o horror que se abateu sobre os brasileiros e as pavorosas previsões que se anunciam. É a desordem como método e estilo!


Jorge Henrique Cartaxo, jornalista, cientista político e historiador

Fonte: https://osdivergentes.com.br