Desde a Proclamação da República, por meio de um golpe militar, contra o minoritário Partido Republicano, em que quem a proclamou imaginara estar depondo o gabinete do regime parlamentarista do Império e não a monarquia, o Brasil político vive de saltos e incertezas. Entre uma ditadura e a expectativa de nova e futura ditadura.
Aqui a democracia tem sido o provisório dos intervalos democráticos, em que a liberdade política ceva os famintos do retorno a um poder autoritário. Na política e fora dela, um certo número de brasileiros gosta de mandar e outro, de ser mandado. As exceções estão aprisionadas nas limitações do pendularismo ideológico.
A multidão de golpistas de 8 de janeiro e seus instigadores está sendo processada e condenada. No entanto, suas lideranças estão fora da cadeia. Continuam descaradamente conspirando contra a democracia, desafiando as leis e os tribunais.
Ainda agora, no 7 de Setembro, convocados por um pastor que trocou o púlpito pela tribuna partidária, organizaram uma ruidosa demonstração partidária na avenida Paulista. Candidatos da extrema direita bolsonarista presentes como se lá não estivessem, na São Paulo sob ocupação.
Cada intervalo democrático tem tido aqui sua safra de partidos políticos. A República nunca teve partidos representativos de um projeto democrático de nação, propriamente republicano.
Neste momento, são 29 os partidos do elenco partidário. Alguns são autênticos. Muitos são apenas disfarces para incrementar as chances de eleição na votação do segundo turno. Com isso os verdadeiros partidos não são os das ideias, mas os de pessoas sem ideias e de grupos de interesse.
Vivemos a antevéspera das eleições municipais. Desde a criação do primeiro município brasileiro, em 1532, é o município e seus interesses localistas a identidade de referência do nosso processo político. Quem observa atentamente a conduta política dos deputados federais, perceberá que um número significativo deles é vereador federal, figura que não está prevista na Constituição.
Do ponto de vista político, o Brasil é hoje um país minimalista, uma aberração. O localismo não é a espacialidade própria da nação e da democracia. O localismo é redutivo e imobilista, mais orientado pela permanência do que pela mudança. Como em “Alice do outro lado do espelho”, de Lewis Carroll, quanto mais anda, mais distante fica do destino.
Não é estranho que isso ocorra num país que tem 29 partidos políticos para não ter nenhum, partidos que não raro conspiram contra a política. Uma vista d’olhos na biografia dos políticos brasileiros nos mostrará que não são poucos aqueles cuja trajetória é viagem turística por partidos políticos os mais desencontrados. O que faz dos nossos políticos sujeitos sem ideias nem convicções políticas.
Nestes dias de preparação para as eleições municipais, os embates não nos apresentam o que os candidatos pretendem fazer para consumar o que deve ser próprio da administração das comunas locais. O município é a unidade política que entre nós confronta o poder com as necessidades sociais e cotidianas dos cidadãos, os eleitores. O município é o lugar institucional em que o eleito não é uma pessoa, mas quem personificará um mandato.
Nas sociedades locais, as invisibilidades são muito diferentes das invisibilidades forjadas das “fake news”. Segundo o dizer popular, ali a mentira tem pernas curtas (embora nem tão curtas assim).
No município, as invisibilidades enganadoras são de outro tipo, fundadas na tradição e no conhecimento tradicional do mundo. O aqui e o agora só enganam o enganador. Mas isso tem feito da consciência localista, entre nós, o móvel de uma lentidão histórica, de uma relutância antipolítica para compreender a distância entre o que o país consegue fazer e o que o país carece que se faça. Entre o individualismo das conveniências pessoais e antissociais e o comunitário do bem comum.
O povo brasileiro vive um curiosíssimo e peculiar momento de consciência política decadente. Nos países democráticos, a consciência política é dominada pelo primado da liberdade mediada pelos valores do direito de expressão pessoal e coletiva das diferentes interpretações do bem comum. A liberdade de expressão, na democracia, seja na tradição liberal, seja na tradição conservadora, aqui, tem sido liberdade no marco da usurpadora precedência do meu direito sobre o direito do outro.
Um dos sinais da decadência da política no Brasil é justamente a prática incivilizada da incompetência para o diálogo. O desmonte das instituições e das regras de civilidade na política abre espaço para o primado da baderna como fundamento da desordem necessária ao autoritarismo.
José de Souza Martins, jornalista
Fonte: https://valor.globo.com/