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A casa nostra

Duas organizações criminosas ficaram célebres no mundo: os “Irmãos Metralhas” e a “Cosa Nostra”. A máfia siciliana faturava com armas, lavagem de dinheiro, corrupção pública, extorsões e outras malfeitorias. A hermética organização protegia os segredos da “famiglia” hierarquizada em “capos”, conselheiros, soldados e associados. Já os “Metralhas” dos quadrinhos eram totalmente caóticos.

Os 3 ladrões fictícios de Walt Disney simbolizam os quadrilheiros mais trapalhões da história do crime. A exemplo deles, os filhos do capitão são apresentados por numerais: 01 (Flávio), 02 (Carlos) e 03 (Eduardo). A diferença dos meliantes da Disney é que os filhos de Bolsonaro não usam máscaras, contra a Covid-19. Um deles sugeriu até enfiá-las no “rabo”.

Além da bestialidade, serventia da casa, a prole é problema nas transações imobiliárias do programa de habitação familiar que merecia o batismo de Casa Nostra, dada a opacidade, cumplicidades e prevalência da regra de ouro do silêncio.

A família Bolsonaro tem relações conflituosas com bancos. É voraz no banco imobiliário, despreza os bancos comerciais e tem pavor do fantasma do banco dos réus. A carteira imobiliária da organização soma perto de 40 transações, entre aquisições e vendas. Os valores chegam a R$ 10 milhões, somando os negócios do pai, filhos, mãe e madrasta em apartamentos, terrenos, casas e salas. Jair Bolsonaro negociou 14 imóveis. Flávio chegou agora a 21 operações. O destaque do empreendedorismo da Casa Nostra é a mansão de R$ 6 milhões do 01 no condomínio da opulência brasiliense.

Rotineiras no frenesi imobiliário do clã são as compras abaixo do valor de mercado, vendas lucrativas, lacunas sobre a origem e licitude dos recursos e a predileção por pagamentos em espécie. Circulam tantas cédulas quanto na Casa da Moeda diante de uma Receita Federal vendada.

A nova mansão de Flávio Bolsonaro tem a fachada da casa do espanto. Há névoas do alicerce ao acabamento. Nos cálculos estruturais ou no orçamento doméstico, a matemática é ciência exata. O valor do imóvel – R$ 5,97 milhões – é mais que o triplo dos bens declarados pelo senador em 2018. Ao TSE, o patrimônio informado foi de R$ 1,7 milhão: um apartamento na Barra da Tijuca, uma sala comercial, 50% da franquia da fantástica fábrica de chocolates, um automóvel e investimentos. A escritura pública da mansão atesta a quitação de R$ 2,8 mi a título de entrada e o financiamento bancário de outros R$ 3,1 mi. Aqui surgem as primeiras rachaduras.

Parece que choveu na horta e houve um incremento de R$ 1,1 mi no patrimônio em 2 anos. As 3 transferências bancárias para pagar a entrada somam R$ 1,09 milhão dos R$ 2,8 mi assinalados na escritura como quitados.

Outras fissuras estão no financiamento obtido em banco público. O BRB é uma instituição comandada por um aliado do capitão no governo do DF. Flávio Bolsonaro e esposa informaram renda de R$ 36,9 mil mensais para beliscar o empréstimo de R$ 3,1 milhões. Para outros pretendentes a renda mínima exigida em um contrato idêntico é de R$ 46,4 mil/mês. O financiamento é de 30 anos e a prestação mensal – R$ 18,7 mil – compromete 51% da renda total. O mandato de senador é finito, precário e termina em 6 anos. Não há garantias quanto aos outros 24 anos, caso ele perca as eleições em 2026, já que não exerce outra atividade. Após a publicidade, o BRB registrou, em uma semana, um aumento de 234% de propostas em condições semelhantes às de Flávio Bolsonaro. A casa agradece.

O palacete foi registrado, atipicamente, em um cartório a 45 quilômetros de Brasília. A escritura pública foi censurada com tarja preta em 18 trechos, omitindo dados cadastrais e a renda dos compradores. Além da entrada, o senador desembolsou R$ 181 mil, à vista, em impostos e taxas. Mesmo de posse da propriedade de alto padrão, bem localizada, o senador Flávio Bolsonaro manteve o imóvel funcional.

Brasília é uma província. O vendedor Juscelino Sarkis é namorado da juíza Cláudia Silva de Andrade. Ela assessorou João Otávio de Noronha na presidência do STJ. Noronha deu a prisão domiciliar a Fabrício Queiroz e à mulher, Márcia Aguiar, uma foragida. Com o voto do Noronha, a 5 turma anulou a quebra de sigilo de Flávio Bolsonaro, uma das vigas da acusação do MP carioca. Como na casa do BBB, os ‘brothers’ circulam nos mesmos ambientes, mas não são amigos.

Flávio Bolsonaro, a mulher e outras 15 pessoas, entre elas Queiroz, foram denunciados à Justiça em outubro de 2020. A acusação contra o senador é de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. No documento de 50 páginas, o MP acusou Flávio Bolsonaro de liderar uma organização criminosa, como era a máfia siciliana, que teria desviado os mesmos R$ 6 milhões da Alerj através de “funcionários fantasmas” em cargos comissionados. Segundo a denúncia, eles devolviam parte do seu salário para o grupo.

A Promotoria ainda identificou que mais de R$ 2 milhões foram repassados para a conta de Fabrício Queiroz, que transferia o dinheiro através do pagamento de despesas da família Bolsonaro, depósitos em contas bancárias do casal e transações imobiliárias para fomentar o programa Casa Nostra.

O hábito de pagar imóveis em espécie, no bucólico e seguro Rio de Janeiro, é hereditário. Rogéria Bolsonaro, genitora dos numerais 01, 02 e 03 e primeira mulher do capitão, comprou em 1996 um apartamento na zona norte do Rio pelo valor de R$ 95 mil. Atualizado o imóvel, situado em Vila Isabel, valeria R$ 621 mil. No período da compra Rogéria Bolsonaro era casada com o então deputado Jair Bolsonaro em comunhão de bens. A separação só aconteceria 2 anos depois, em 1998.A escritura registra com todas as letras que o preço “certo e ajustado de R$ 95 mil foi recebido integralmente no ato… através de moeda corrente devidamente conferida, contada e achada certa e examinada pelos vendedores”.

Entre o final de 1997 e 2008, quando estava com o então deputado Jair Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira comprou com ele 14 apartamentos, casas e terrenos, que somavam um patrimônio avaliado em cerca de R$ 3 mi, o equivalente a R$ 5,3 mi em valores corrigidos pela inflação. Pelas escrituras, contou a revista “Época”, cinco dos 14 imóveis foram pagos “em moeda corrente”, ou seja, em dinheiro vivo. Foram duas casas, um apartamento e dois terrenos em negociações separadas, que somam R$ 243.300, em valores históricos, ou atualizados R$ 638 mil.

Outro midas do mercado, Eduardo Bolsonaro, pagou R$ 1 milhão em 2016 por um apartamento em Botafogo, Zona Sul do Rio. A escritura mostra que ele deu um sinal de R$ 81 mil e estava pagando, no ato, mais R$ 100 mil em “moeda corrente do país, contada e achada certa”. O mesmo registro ainda firma o compromisso do deputado de pagar mais R$ 18,9 mil seis dias depois. A maior parte, R$ 800 mil foi financiada pela CEF. Em 2011, Eduardo Bolsonaro comprou por R$ 160 mil outro imóvel, R$ 50 mil foram honrados em espécie. A secretaria municipal de fazenda, para efeitos fiscais, avaliou o imóvel por R$ 228 mil, ou seja 30% a mais. As revelações foram do jornal “O Globo”. O patrimônio dele entre 2014 e 2018 subiu 432%, segundo os dados do TSE.

Carlos Bolsonaro é outro aplicado investidor do banco imobiliário da Casa Nostra. O jornal “Estado de São Paulo” mostrou que em 2003, no primeiro mandato como vereador, pagou R$ 150 mil em dinheiro vivo por um imóvel na Tijuca. O valor corrigido é de R$ 366 mil. Um dos três imóveis comprados pelo vereador durante a vida pública foi adquirido por preço 70% abaixo do avaliado pela Prefeitura. O apart-hotel custou R$ 70 mil ao filho 02, quando o valor venal era de R$ 236 mil estipulado pela prefeitura para cobrança de impostos.

O sonho da casa própria do clã ameaça se tornar um pesadelo eterno, mesmo depois de serem despejados dos palácios oficiais de Brasília. A face mais aterradora do crime no Brasil é pioneira do Casa Nostra. A milícia carioca vende casas e apartamentos ilegais, despeja moradores que não pagam a taxa de segurança, revende os imóveis dos desalojados e constrói clandestinamente. Opera em diversos locais como Guaratiba, Itaboraí, Magé e Rio das Pedras, onde 2 prédios ruíram. Adriano da Nóbrega, arquivo queimado fora da casinha, era o imperador da milícia em Rio das Pedras.

Foi homenageado na prisão por Flávio Bolsonaro com a maior medalha da Alerj e elogiado por Jair Bolsonaro (“brilhante oficial”) quatro dias depois de condenado por homicídio. Adriano era parceiro de Queiroz. A mãe e esposa do chefe do “escritório do crime” trabalharam com o 01 e foram denunciadas na quadrilha. Jair e Flávio Bolsonaro já defenderam a legalização das milícias. Um dos denunciados pelo assassinato de Marielle Franco é vizinho no condomínio. Tudo em casa, junto e misturado.

O bom filho sempre a casa torna. Maneco Vargas, filho de Getúlio Vargas, foi decisivo para a o suicídio do pai depois do “mar de lama no Catete”. O aprofundamento das apurações na ‘República do Galeão’ mostrou que Gregório Fortunato, chefe da guarda de Vargas, enriquecera ilicitamente nos porões do governo e adquiriu fazendas de Manuel Antônio Vargas – o Maneco – sem renda que lastreasse o negócio sujo.

Para agravar a situação, Fortunato fizera um empréstimo em um banco público. Os xavecos do Maneco serviram para quitar dívidas pessoais e abreviar o governo Vargas, que, encurralado pelas velhacarias do filho, saiu da vida para entrar na história. Até aqui o capitão emporcalha nossa história, imuniza o patrimônio da Casa Nostra, se esfalfa para encobrir o mar de lama e escarnece da vida, lendo supostas cartas de suicídio e chacinando brasileiros com um negacionismo sepulcral.

Na casa da mãe Joana o fruto não cai longe da árvore. Os ensinamentos vieram do “imbrochável”, que gastava o auxílio moradia da Câmara “pra comer gente”, tendo residência em Brasília. Bolsonaro mandou “o idiota” comprar de vacinas “na casa da tua mãe”. Ofende a mãe de terceiros para desviar os vultos da casa mal assombrada do filho. O casarão, envolto na penumbra, exibe um telhado de vidro gotejante, paredes trincadas, canos entupidos, calhas quebradas, teto com infiltrações, a fossa cheira mal, o lodo invade o jardim, as dobradiças estão enferrujadas, as portas empenadas e as instalações elétricas em curto. Na piscina e na caixa, a água sai pelo ladrão. Com tantas avarias, um dia a casa cai.


Weiller Diniz, jornalista

Fonte: https://osdivergentes.com.br