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A cara do Brasil

A cara do Brasil

De passagem pelo Brasil, anos atrás, perguntaram a Umberto Eco o que era afinal Silvio Berlusconi, então eleito primeiro-ministro. “Infelizmente ele é a cara da Itália de hoje”, respondeu. Não havia ali ironia, apenas cínico conformismo diante do personagem folclórico e corrupto. O Brasil de 2025 seriam os 315 deputados que votaram para aliviar o golpista Alexandre Ramagem e o chefe do bando? Ou seria o notório ex-ministro Carlos Lupi? Sem muito esforço: é Lula da Silva e sua Janja, ao lado de Nicolás Maduro, entusiasmado com o ditador Vladimir Putin?

Posso olhar para o lado, fugindo dos tipos eleitos pelo voto popular, e pensar em Alaíde Costa, que, aos 89 anos, lança um álbum avassalador: “Uma estrela para Dalva”, em homenagem a Dalva de Oliveira. É um Brasil com outro tipo de civilização, ainda educado e poético, que não precisa mostrar a bunda, como Anitta, em assanhada vulgaridade. Ao lado de Guinga, Antonio Adolfo e André Mehmari, entre outros, Alaíde oferece um repertório de canções — algumas de Herivelto Martins, com quem Dalva foi casada, como “Ave Maria no morro” — de quando o brasileiro acreditava no país do futuro. Mais certo se aferrar à definição de Oswald de Andrade, imbatível: “O Brasil é um monte de gente dando adeus”. Ou seria um “país de chegadas”?

Nos quarenta anos de democracia, a polarização nos coloca falsamente entre a cruz dos Adoradores do Golpe ou das genuflexões para o Populismo de Esquerda. O mundo delicado de Guimarães Rosa e Noel Rosa desapareceu sepultado pelas emendas secretas, pelo fundo eleitoral e pelas redes sociais. A política de coalizão substituiu a possibilidade de Drummond de Andrade pela realidade ralé de Valdemar Costa Neto e Sóstenes Cavalcante. Ou pelo ativismo reverso de Anielle Franco.

A culpa não é dos eleitores, mas de um sistema que nos prende às imagens de mundo do passado, capaz de afastar da política os melhores quadros. Não deve causar entusiasmo levantar da cama na segunda pela manhã sabendo de uma reunião com Arthur Lira. Ou discutir questões atuariais com Carlos Lupi. O desaforado filósofo Sócrates escolheu tomar cicuta para demonstrar na prática ao povo de Atenas sua descrença na democracia, como escrito por I.F. Stone em “O julgamento de Sócrates”. Passados alguns séculos, com algumas graves guerras pela História, e a ortografia de Bolsonaro, as instituições ganharam camadas de proteção. Mas sempre escapa uma Carla Zambelli por baixo da porta.

O historiador Robert Paxton, em sua “Anatomia do fascismo”, caminha pelo surgimento das representações políticas modernas. Ao buscar as raízes do nascimento dos extremismos de direita, mostra a reação das elites ao voto universal, ao surgimento do político profissional (o primeiro Parlamento a dar salário a deputados foi o francês, ainda no século XIX) e a manipulação do eleitorado. Colocado em prática na eleição de 1848, Luís Napoleão (sobrinho do Imperador) foi eleito com ampla maioria (74%) — depois deu um golpe. O velho Marx errou sua aposta ao imaginar a vitória do proletariado sobre a burguesia. Nem ele, tampouco Engels, imaginavam a possibilidade de os trabalhadores votarem num representante das elites (o patrão, na linguagem usual). Parece a surpresa dos democratas ao ser novamente derrotados por Donald Trump.

A extrema direita sempre mostrou habilidades na manipulação dos eleitores nos momentos de crise econômica ou de mudanças nos processos de produção (lá, a Revolução Industrial; agora, a Revolução Digital). Ninguém deve esquecer que tanto Mussolini como Hitler foram eleitos. E já pregavam várias de suas atrocidades.

Mesmo com a volta à democracia, o sistema eleitoral brasileiro sempre se mostrou imperfeito. Nunca houve modelo capaz de representar mais fielmente a vontade popular. Agravando as distorções, na véspera de cada eleição os políticos promovem mudanças em benefício próprio. Em poucos anos, o fundo eleitoral se transformou num maná, surgiram as emendas secretas (e bilionárias) somadas à manipulação das redes sociais.

Sem reforma eleitoral, com um novo sistema, a começar pelo voto distrital, o eleitor manipulado continuará a ser uma arma contra a democracia. A continuar assim, a política permanecerá na mão dos profissionais pagos pelo próprio povo. Como 315 deputados votam para inocentar alguém que quis dar um golpe? Seriam eles representantes da maioria ou instrumento de um grupo minoritário? A manobra de Hugo Motta para aumentar, e não diminuir, o número de deputados novamente deturpa a representação. Mas hoje ele é a face eleita do Brasil.

Miguel de Almeida, jornalista, poeta e editor brasileiro

Fonte: https://oglobo.globo.com/