No final de 2021, o governo Bolsonaro produziu uma “batata quente”. Trata-se da mudança na sistemática de pagamento de precatórios (despesas decorrentes de sentenças judiciais), por meio de uma emenda à Constituição, que postergou para 2027 parte importante dessas despesas incorridas entre 2022 e 2026.
A motivação foi o aumento expressivo do valor a ser saldado em 2022, chegando a R$ 89 bilhões ante R$ 54,9 bilhões em 2021, o que, pela regra do teto, exigiria importante corte de despesas, justamente em um ano eleitoral.
A moratória unilateral foi bastante criticada, e a medida foi apelidada de PEC do Calote. Os mercados reagiram negativamente, com queda da Bolsa e dólar acima de R$ 5,50.
O passivo acumulado entre 2022 e 2026 poderá chegar a R$ 200 bilhões em 2027, conforme o Relatório de Projeções Fiscais de julho do Tesouro. O valor equivale a 1,4% do PIB, sendo um passivo oculto, não incorporado às estatísticas oficiais de endividamento público.
Somando-se o valor devido em 2027, a cifra deverá chegar a R$ 250 bilhões, segundo o governo. Mantida a regra atual, o pagamento desse passivo deverá se submeter ao limite de despesas do arcabouço fiscal, comprimindo o espaço para as despesas discricionárias.
É meritório o esforço do Ministério da Fazenda em tratar desse passivo, desarmando a bomba a explodir em 2027, valendo o registro de que o PT votou contra a PEC dos Precatórios. A inação impactaria as expectativas dos agentes econômicos quanto à sustentação do regime fiscal e machucaria a própria credibilidade do ministro Haddad.
Isso sem contar o problema concreto de a batata quente cair no colo do próximo presidente, que poderá ser do PT. A omissão agora sairia caro.
Melhor seria se esse tema tivesse sido tratado na proposta do arcabouço fiscal ou antes disso, na PEC da Transição. É inevitável a dúvida sobre a motivação dessa omissão; talvez para se buscar posteriormente uma saída que não prejudicasse os planos de expansão de gastos do governo.
A Fazenda propõe quitar cerca de R$ 95 bilhões da fatura este ano (refere-se à soma do passivo acumulado em 2022 e 2024, por conta da PEC dos Precatórios), com abertura de crédito extraordinário, o que significa a despesa não estar sujeita aos limites do arcabouço fiscal. É uma proposta adequada.
O problema maior é propor contabilizar o pagamento da correção de valores pelo atraso no desembolso dos precatórios como despesa financeira, de forma permanente, o que implicaria não entrar no resultado primário.
Isso fere as boas práticas da gestão fiscal, bem como a credibilidade da equipe econômica. Existe ainda o efeito colateral de reduzir o incentivo para o governo evitar precatórios, já que esse pagamento deixaria de constranger o Orçamento.
A proposta da Fazenda vai além de saldar o passivo deixado pelo governo anterior, mas não de forma a enfrentar o problema, e sim o camuflando por meio de mudança em critério contábil, o que alimenta desconfianças.
A solução ideal seria cortar despesas para acomodar o pagamento de precatórios, a ser normalizado, e estabelecer boa governança para conter seu crescimento — especialistas apontam certo descuido do governo nessa frente.
É verdade que mesmo um governo reformista teria dificuldades para cortar despesas, pois cerca de 92% são obrigatórias e não há uma grande reforma que altere de modo expressivo a dinâmica dos gastos. Serão necessárias várias iniciativas, inclusive outra rodada de reforma da Previdência. Ainda que desafiador, é necessário haver esforço nessa direção, incluindo a contenção de gastos discricionários.
Mesmo o caminho de buscar saídas alternativas para lidar com o elevado volume de precatórios não dispensa o cuidado com medidas para minimizar perdas. Para isso, a transparência na gestão fiscal é pedra fundamental. E, como não poderia deixar de ser, é necessário trazer a agenda de redução de despesas.
A experiência do passado deixa lições. A credibilidade de Paulo Guedes foi abalada por ter furado o teto, sem apresentar qualquer reforma estrutural para conter gastos obrigatórios. O abalo não foi maior porque a arrecadação batia recordes, inflada pela alta de commodities e pelo aumento da inflação no atacado.
O argumento de que os fins (suspender a moratória) justificam os meios (mudar as regras contábeis) não é adequado. Precisa haver esforço fiscal.
Zeina Abdel Latif é uma economista brasileira. É a economista-chefe da XP Investimentos e ex secretária de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo.
Fonte: https://oglobo.globo.com/