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A acusação mais comprometedora

A acusação mais comprometedora

De todas as acusações que pesam contra Bolsonaro, a criação de uma espécie de serviço de inteligência paralelo é a que ele terá mais dificuldade de explicar. Bolsonaro alega que tentou vender joias que julgava ser presentes “personalíssimos” e que, tão logo o estatuto dos presentes foi contestado, ele os devolveu, sem prejuízo ao Erário. Alega também que sempre afirmou publicamente que não tinha tomado a vacina contra a Covid-19 e que, se houve fraude no cartão de vacinação, não aconteceu por iniciativa dele. Até a participação na tentativa de golpe, no fim de 2022 e começo de 2023, não passou, segundo ele, de discussões que nunca foram levadas a cabo e que, além do mais, estavam respaldadas pela Constituição — ou por certa leitura da Constituição.

Mas como Bolsonaro explicará o uso da estrutura do Estado para perseguir inimigos? Não era essa a essência do discurso antipetista alegando que durante os governos Lula e Dilma o PT aparelhara o Estado brasileiro?

A crítica ao PT era que o partido subvertera a natureza do Estado, substituindo o caráter republicano da administração pública pelo aparelhamento despudorado pela militância do partido. Como os críticos do aparelhamento atribuído aos petistas conseguirão responder às acusações de que empregaram servidores públicos e sistemas públicos de investigação e vigilância para perseguir adversários políticos?

A acusação contra Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas” — em que ele é acusado de ter se apropriado de parcela do salário de assessores de seu gabinete na Alerj — foi baseada num relatório de inteligência fiscal produzido por servidores da Receita Federal. Segundo o despacho do ministro Alexandre de Moraes, a estrutura da Abin foi usada para monitorar os três auditores responsáveis pelo relatório. O então diretor da agência, Alexandre Ramagem, é acusado de ter ordenado diligência para “achar podres e relações políticas” dos três, com o propósito de desacreditá-los e anular a investigação. Áudio de uma reunião no dia 25 de agosto de 2020 mostra que Jair Bolsonaro, o general Augusto Heleno e a advogada de Flávio Bolsonaro discutiram com Ramagem as informações encontradas no dossiê produzido contra os servidores, em que se falou da instauração de procedimento administrativo.

O coletivo Sleeping Giants organizou uma campanha bem-sucedida pressionando empresas a retirar seus anúncios de perfis bolsonaristas implicados na disseminação de desinformação. A organização estima que tais perfis perderam R$ 200 milhões em anúncios. O despacho de Alexandre de Moraes mostra que a inteligência paralela de Bolsonaro foi usada para fazer um dossiê contra os integrantes do coletivo e que as informações foram encaminhadas a um perfil bolsonarista, que as publicou nas redes sociais. No X, o Sleeping Giants esclareceu que informações pessoais dos fundadores, de suas casas e de suas famílias foram divulgadas pelo perfil bolsonarista, gerando uma onda grave de ameaças. O influenciador bolsonarista terminou preso na operação da Polícia Federal.

Histórias semelhantes podem ser contadas com respeito a investigações sobre parlamentares que fizeram parte da CPI da Covid, como Omar Aziz, Randolfe Rodrigues e Renan Calheiros; agências de verificação como Lupa e Aos Fatos, que checavam imprecisões e mentiras nas declarações de Bolsonaro; jornalistas que publicaram textos críticos ao governo, como Vera Magalhães ou Mônica Bergamo; além de parlamentares da oposição; como Joice Hasselmann ou Jean Wyllys; e ministros do Supremo, como Luís Roberto Barroso ou Dias Toffoli. Muita gente foi clandestinamente espionada pela inteligência paralela de Bolsonaro.

O ex-presidente pode se esquivar das denúncias de venda das joias, de fraude no cartão de vacinação e, com alguma sorte, até da acusação de conspirar para um golpe de Estado. Porém terá muita dificuldade de explicar por que cooptou funcionários e a estrutura de investigação da Abin com o objetivo de vasculhar informações de desafetos e adversários políticos para prejudicá-los. Esse é o tipo de instrumentalização do Estado que os bolsonaristas gostam de criticar na Venezuela e nas ditaduras de esquerda — e que vimos brotar bem aqui, no coração de um governo conservador.

Pablo Ortellado, Professor de Gestão de Políticas Públicas na USP

Fonte: https://oglobo.globo.com/