Por que até hoje, ano em que a Constituição de 1988 completa 35 anos, em que houve a primeira tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito nela desenhado e que faz 100 anos da morte de Rui Barbosa, a data na qual ela foi proclamada (5 de outubro) nunca foi oficializada como o Dia Nacional da Democracia? E, consequentemente, a semana anual em que a data transcorre, a exemplo de outras semanas nacionais oficiais (como a do meio ambiente ou a da ciência e tecnologia), ainda não é uma Semana da Cidadania, para atividades obrigatórias por instituições públicas, até eventualmente de apoio a iniciativas semelhantes pela sociedade civil ou espontâneas da população, que sejam comemorativas e reflexivas sobre as nossas conquistas democráticas e exercício atual de direitos?
Por que – excetuando o retrocesso bolsonarista da cidadania, pela notória contrariedade governamental à Carta constitucional – nenhuma Presidência do Brasil tomou tal iniciativa legislativa? Nem da Câmara ou Senado, inclusive pela naturalmente imbuída comissão parlamentar de Constituição e Justiça (ou CCJ) em cada qual? Ou mesmo sugerida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), guardião oficial da Constituição? Inclusive pela sociedade civil, anteriormente então unificada para garantir sua participação na elaboração constitucional?
Pois comemorar a cidadania também contribui, diretamente, à formação de uma cultura cívica correspondente. Fato sabido em nações democráticas tradicionais (como a monarquia parlamentar britânica e a república presidencial dos Estados Unidos) ou recentes (como a portuguesa, que tornou “Dia da Liberdade” a data do fim do autoritarismo salazarista, já prestes a completar 50 anos). Uma cultura democrática também se forma com informações históricas verídicas, sua circulação ampla e reflexão, na atualidade, das lutas sociais e políticas que resultaram na democracia.
O fato é que a unidade democrática, da esquerda à direita, que redigiu a Constituição de 1988, se quebrou no dia seguinte à sua entrada em vigor. A pior consequência política da falta de arte política unitária durante sua vigência, mais do que impasses polarizados na classe política, foi a ausência renitente de uma cultura democrática na população, que a tornou vulnerável a campanhas difamatórias da democracia, atingida pela desvalorização cotidiana da política por militâncias sociais autoritárias.
Instituir 5 de outubro como Dia da Democracia e seu período semanal como Semana da Cidadania brasileira sequer acarretaria quaisquer gastos públicos, já que seriam atividades memoriais inerentes às programações anuais das instituições públicas. Tal regulação da memória da conquista da liberdade política pela soberania popular brasileira apenas asseguraria sua previsão ordinária na governança habitual das instituições dos Poderes estatais, sem tolher iniciativas análogas pela sociedade civil.
Incumbir as instituições públicas desse papel anual é fazê-las retribuir à democracia atual o tanto que já lhes foi conferido. Afinal, todas elas são beneficiárias da ordem de 1988: muitas fortalecidas (como os tribunais de contas e o Ministério Público), outras aperfeiçoadas (como a Câmara dos Deputados e o STF) e algumas até criadas (como a Defensoria Pública e os conselhos tutelares) pela Constituição vigente. Mesmo a polícia, ainda que mantida sua dualidade estadual/ distrital militar e civil, recebeu da Carta Democrática maior delineamento de seu escopo na segurança pública.
Mais do que lembrar o atentado aos Poderes em 8 de janeiro, a melhor resposta da cidadania é a necessária há muito: atividades memoriais diversas e condizentes com a natureza institucional de cada instituição pública, que recordem, discutam e comemorem as lutas sociais e políticas que propiciaram a atual Magna Carta brasileira ou os direitos constitucionais que ela garante, cotidianamente. Assim, sua memória nacional vivificada poderá contribuir para a ainda necessária construção de uma cultura cívica democrática ou participativa, junto com a população brasileira.
A renitente indefinição de nosso sistema de governo
Trinta e cinco anos após a promulgação da atual Constituição (5/10/1988), as relações entre Governo e Congresso continuam indefinidas: quanto pode o Legislativo interferir na formatação do Executivo e quando este pode condicionar a pauta legislativa? Ambas são questões recorrentes, sempre que advém novos ministérios e medidas provisórias presidenciais em série. São dúvidas devidas à opção constituinte pelo sistema presidencial (reiterada em plebiscito posterior) não ter assumido seu caráter híbrido, deixando os institutos parlamentaristas, nele incrustados desde a derrota do Parlamentarismo na Assembleia, sem plena regulação.
Faltou arte política a ambas as correntes constituintes da Assembleia, à medida que a vitória presidencialista (23/3/1988) aprovara um presidencialismo tão híbrido quanto a derrotada proposta parlamentarista. Cujos adeptos, ao invés de buscarem aperfeiçoar as inovações parlamentaristas de censura parlamentar a ministro, adoção congressual do programa governamental eleito e medidas provisórias presidenciais, aliaram-se aos presidencialistas contrários a mesclar sistemas, para expurgá-las. Desta coalizão de veto, entre parlamentaristas derrotados e presidencialistas puristas, escaparam somente a lei delegada (anterior à nova Constituição e pela qual o Governo legislaria por delegação parlamentar, em certas matérias) e a medida provisória como substituta do tradicional decreto-lei presidencial.
Subestimar a questão do sistema de governo foi um erro constituinte, embora apontado por alguns de seus membros, na Assembleia; por quatro grupos que propuseram seu debate prévio às demais questões; pela magnitude do tema, cujos 626 discursos plenários superavam todos os demais sobre a ordem pública vindoura; e pela presença em plenário de todos os constituintes durante sua votação – única vez em que ela aconteceu.
Mesmo a reforma da medida provisória, desde 2001, não delimitou seu conteúdo temático e se limitou aos procedimentos formais entre os Poderes eleitos. Porém, sua delimitação temática mínima seria a base de um presidencialismo semiparlamentar, como sistema no qual o governo compete ao Executivo, mas sob influências parlamentares cotidianas que não tolham a Presidência da República. E definir o sistema de governo é passo que devia ser prévio à discussão (ainda necessária para vincular eleitores e deputados no Brasil) sobre o atual sistema partidário e eleitoral, já malograda em 2015.
Neste sentido, cabe ao Executivo e ao Legislativo abandonarem costumeiras pretensões de hipertrofia executiva ou à hegemonia parlamentar (parlamentarismo híbrido ou semipresidencialista), por sistema mais condizente com a vocação democrática brasileira: o presidencialismo híbrido semiparlamentar já fixado, mas ainda não inteiramente delineado, em 1988. Porque tal regime de governo respeita a vontade popular concentrada pela eleição presidencial, mas responsabiliza politicamente, porém não totalmente, a Câmara dos Deputados no exercício rotineiro do Governo Federal.
Julio Aurelio Vianna Lopes, pesquisador da Casa de Rui Barbosa