Nunca, nem em meus piores pesadelos, imaginei ver Jair Bolsonaro presidente da República. Ele sempre foi para mim só uma piada de péssimo gosto, um personagem folclórico do mal, um integrante do baixo clero que jamais iria alçar voos maiores. Imaginem, portanto, minha surpresa e desgosto ao ver que milhões de brasileiros puderam votar nesta triste figura para comandar nosso país.
Nunca, nem em meus piores pesadelos, imaginei que ia ter gente no Brasil defendendo a ditadura militar, a censura, a tortura. Sou filha da redemocratização. Não conheci, adulta, os anos de chumbo. Os ventos que sopravam em minha juventude eram os da volta da democracia, da liberdade, das eleições, da esperança no futuro. Ventos opostos aos que sopram agora, com a sombra sobre nós até de ressurreição dos anos mais duros do regime militar.
Quando eu tinha 18 anos a ditadura acabou; aos 21, a Constituição foi promulgada; com 22, votei para presidente pela primeira vez. Nos jornais onde trabalhei, desde Fernando Collor, volta e meia faziam matérias com militares de pijamas chantageando a Nação com quarteladas. Eu achava pura teoria da conspiração. Tinha convicção de que a ditadura era uma página virada da nossa História. Como alguém poderia sentir saudade de ver gente presa e morta apenas por se opor a um governo fardado?
2019 foi o ano em que meus piores pesadelos se concretizaram. Vi o presidente fazer piada com os paus-de-arara da tortura e ser aplaudido. Vi seu filho ameaçar o povo com a volta do AI-5 e dois ministros justificarem a fala. Vi o presidente intimidar jornais e jornalistas. Vi gente na rua vestida com o verde integralista. Vi o Supremo ser atacado pelo próprio ministro da Justiça. Vi o presidente tripudiar sobre o pai morto pela ditadura de duas pessoas. Vi o presidente dar “nota dez” em todos os quesitos ao regime que torturou 20 mil pessoas e matou ou “desapareceu” com pelo menos 434, de acordo com os números oficiais.
Vi um país onde se matou mais indígenas do que nos últimos 11 anos; e onde cresceu o número de mortos pela polícia. Vi crianças, trabalhadores e adolescentes inocentes serem mortos pela brutalidade policial. Vi o número de feminicídios aumentar. Vi o assassinato de uma vereadora negra de esquerda completar um ano sem ser solucionado, vi gente zombando do crime e vi ainda levantarem a suspeita de ligação entre a morte dela e o entorno do presidente da República.
Vi um cientista ser perseguido por fazer seu trabalho: analisar dados de satélites sobre o desmatamento, que aumentou 104% em novembro e 84% em relação a 2018. Vi as praias nordestinas banhadas de petróleo e um ministro do Meio Ambiente inepto que preferiu jogar a responsabilidade sobre a Venezuela e o Greenpeace, mesma estratégia do seu chefe, que culpou as ONGs e o ator Leonardo DiCaprio pelos incêndios criminosos, cujos principais suspeitos são grileiros.
Não bastasse o descalabro em relação aos direitos humanos e o meio ambiente, também tivemos um ano em que o número de pobres voltou a crescer, em que perdemos o direito à aposentadoria digna e em que o aumento da informalidade virou “diminuição do desemprego” na estatística oficial. A possível maquiagem nos números para chegar ao mísero PIBinho, denunciada pelo Financial Times, era algo que todo mundo já previa. Afinal, a outra ditadura também se utilizou deste artifício para chegar ao “milagre econômico” dos anos 1970.
Nem em meus piores pesadelos eu pensei existirem brasileiros que apoiassem este horror. Sempre fomos conservadores, é verdade. Mas daí a apoiar abertamente a ditadura militar? Homenagear torturador? Desprezar o assassinato de índios? É duro segurar a onda da decepção e da amargura que sinto com uma parcela significativa de nosso próprio povo. Pelo menos 30% da população apoiam Bolsonaro e o que ele representa, dizem as pesquisas. Então um terço dos brasileiros é fascista? Que pena. Fascismo é sinônimo de retrocesso, de barbárie. Não é à toa a sensação de que estamos andando para trás.
Fazemos perguntas hoje que nem em nossos piores pesadelos pensávamos que iríamos voltar a fazer desde que a ditadura acabou: teremos eleições em 2022? Se tivermos, elas serão limpas? Podemos dizer o que queremos nas redes sociais ou corremos risco de vida? Seremos perseguidos por criticar o presidente? Irão nos torturar, prender, matar? O Congresso pode ser fechado? Os jornais voltarão a ter um censor? Haverá mesmo um novo AI-5? Teremos que deixar o país aos milhares? Quem sabe?
O ano está acabando e confesso minha tristeza e desalento. Não vejo perspectivas de que tenhamos um “feliz ano novo”. Me agarro às alegrias pessoais e sugiro que vocês façam o mesmo. Cerquem-se de afetos. Curtam as pessoas amadas. Fujam das redes sociais sempre que possível. Tentem viver a vida lá fora, sentir o calor do sol, colocar os pés na areia da praia, fazer exercícios ao ar livre… Leiam mais, vejam mais filmes, escutem música, vão ao teatro –a arte é parte fundamental da resistência, não é por acaso que ela tem sido um dos principais alvos da selvageria de extrema direita.
Precisamos fortalecer nossos espíritos, porque os tempos sombrios parecem estar apenas começando. Este foi só o primeiro ano…
Cynara Menezes, jornalista
Fonte: https://www.brasil247.com