Era menino ainda, mal tinha completado 20 anos, e entrara no jornal no começo do ano anterior.
Mais jovem repórter de um dos maiores jornais do país, era aluno da USP e fazia a cobertura dos confrontos quase diários dos estudantes com a polícia.
No começo de outubro de 1968, uma dessas batalhas durou 12 horas e se espalhou pela cidade.
Jornalistas também eram presos e espancados. Quando eu tentava defender uma estudante, PMs atiçaram um cão pastor contra mim e levei uma mordida na perna.
Assim que cheguei ao jornal, formou-se uma rodinha à minha volta.
Até Júlio de Mesquita Neto, o dono do jornal, quis saber o que estava acontecendo.
“Por que esse menino foi se meter com a polícia?”, queria saber.
Acho que foi nessa cobertura que caiu a ficha. Até então, eu era o que se podia chamar de “jornalista alienado”, muito mais interessado em ver os jogos do meu São Paulo e aproveitar a noite paulistana, muito efervescente naquela época.
Chico Buarque, com quem eu havia estudado no ginásio do Colégio Santa Cruz, também era um jovem que estava começando a carreira e dava algumas canjas nos barzinhos da Galeria Metrópole, na avenida São Luiz.
O pior da ditadura ainda estava por acontecer, sabíamos todos, como eu conto no meu livro de memórias “Do Golpe ao Planalto – Uma vida de repórter” (Companhia das Letras).
Na noite de 13 de dezembro de 1968, eu estava na redação terminando de escrever uma matéria, quando todo mundo correu e se aboletou em torno da mesa de Clóvis Rossi, o chefe de reportagem.
Na madrugada daquele dia em que o marechal Costa e Silva editou o Ato Institucional Nº 5, o principal editorial do jornal, na página 3, trazia o premonitório título “Instituições em Frangalhos”
Relato no livro:
“Informado por algum dos vários colaboradores do regime infiltrados na redação, o delegado Silvio Correia de Andrade, da Polícia Federal, invadiu a oficina que dava para a rua Martins Fontes, e gritou a ordem:
“Parem as máquinas!”.
Em seguida, determinou aos policiais que o acompanhavam a apreensão de todos os exemplares já prontos para a distribuição.
Pela primeira vez, desde o golpe militar, o “Estadão” deixara de circular.
Logo cedo, os diretores Julio Neto e Ruy Mesquita tinham ido se queixar ao governador Abreu Sodré, um amigo da família nomeado para o cargo pelos militares.
Comunicaram-lhe que o jornal não mudaria sua linha editorial, agora de oposição aberta ao regime, que haviam ajudado a implantar, em 1964.
No começo da noite do dia 13, dois policiais à paisana da Divisão de Diversões Públicas da Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo chegaram à redação para “examinar o noticiário político”.
Era o início oficial da censura prévia.
No silêncio repentino do ambiente sempre barulhento, destacava-se a voz grave do marechal no rádio, que não deixava nenhuma dúvida nas suas palavras, ao detalhar as medidas previstas no Ato Institucional Nº 5.
O Brasil entrava no quinto ato. Era um golpe dentro do golpe _ a ditadura total, sem disfarces, com mais cassações de mandatos, fechamento do Congresso Nacional e fim das liberdades e dos direitos individuais, começando pela censura prévia.
Ao recordar esse episódio muitos anos depois, Oliveiros Ferreira, o chefe da redação, me contou que Carlão (Luiz Carlos Mesquita, um dos diretores mais nosso amigo), só se zangou quando um contínuo serviu café aos censores.
Voltei para a minha mesa e continuei a escrever, como se nada estivesse acontecendo.
Professor da USP, estudioso dos assuntos militares, Oliveiros Ferreira, previu um longo e feroz período de ditadura”.
***
É esse Brasil tenebroso, de dedo-duros, censores e torturadores, que espalhavam o terror e o medo, não só nas redações, mas por todo o país, que o ex-tenente Jair Bolsonaro, reformado como capitão pelo Exército, aos 33 anos, quer trazer de volta, 51 anos depois.
Se ele ameaça até colocar ministros corruptos no pau-de-arara, pode-se imaginar o que fará com o resto da população que não segue as ordens dele.
E ainda tem muita gente no Brasil ao lado desse capitão, cada vez mais enfurecido, querendo ver o circo pegar fogo.
Já não sou mais um menino para correr dos cachorros da polícia e temo a história se repetir _ ao mesmo tempo, como farsa e como tragédia.
Quem diria que no dia 13 de dezembro de 2019, uma sexta-feira, ainda teríamos gente do governo defendendo a volta do AI-5.
É muito assustador! Só quem viveu aquela época sabe os riscos que estamos correndo nas mãos desses alucinados saudosistas da ditadura.
Eles não estão brincando. Parece que essa longa noite nunca acaba…
Bom final de semana a todos, se possível.
Vida que segue.
Ricardo Kotscho é jornalista
Fonte: https://www.balaiodokotscho.com.br