Já se passaram mais de cinco décadas. Ainda assim, até hoje, ninguém sabe ao certo o número de manifestantes que, num célebre 26 de junho de 1968, inundaram o Centro do Rio para protestar contra a ditadura militar. O ato ficou conhecido como a Passeata dos 100 mil e assim permanece — até porque alguns milhares a menos ou a mais não haveriam de alterar seu peso para a História política do país. Quando se trata de mapear a devastação humana em curso na Faixa de Gaza, cada número unitário conta — é a existência, a mais ou a menos, de uma criança, um avô, talvez um amigo, uma vizinha, uma mãe. Na sexta-feira passada, 119º dia da guerra desencadeada por Israel em retaliação ao massacre terrorista sofrido em 7 de outubro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) cravou um número redondo, acachapante: 100 mil pessoas, ou mais, já teriam morrido (27 mil), sido feridas (66,1 mil) ou simplesmente tragadas no sumidouro de destroços da guerra.
Os dados se baseiam na coleta de informações do Ministério da Saúde do Hamas, parte diretamente envolvida no conflito. São, portanto, de difícil comprovação independente. Ainda assim, os órgãos internacionais trabalham com essa difícil aproximação da realidade. Segundo o correspondente em Genebra do portal UOL, Jamil Chade, também o Unicef divulgou um dado aterrador na semana passada: 17 mil crianças palestinas andam desamparadas pelo enclave, tão atordoadas “que levam dias até conseguir dizer seus próprios nomes”.
Nas brumas de qualquer guerra, a produção de desinformação por parte dos dois lados é sempre prodigiosa, a começar pelas tentativas de manipulação das mídias. Aproximar-se dos fatos entre suas muitas versões tem sido um baita desafio na região conturbada há tantas gerações. Dias atrás, o matutino britânico The Guardian divulgou uma “investigação visual” extraordinária sobre a dimensão da destruição física de Gaza por Israel até duas semanas atrás. Com foco em três cidades específicas — Beit Hanoun, Al-Zahra e Khan Younis —, o paciente levantamento recorreu a imagens de satélite de fontes públicas, como o Planet Labs, OpenStreetMap, Copernicus Sentinel, além de um balaio múltiplo de recursos investigativos. O resultado, disponível gratuitamente no site do jornal, demonstra que os bombardeios destruíram total ou parcialmente entre 142.900 e 176.900 prédios, 17 escolas e universidades, 16 mesquitas, três hospitais, três cemitérios, 150 estufas agrícolas.
Da apuração surgiu até mesmo um termo —“domicídio” — para a destruição deliberada de uma casa a ponto de torná-la inabitável e impedir o retorno dos deslocados. Simultaneamente, destrói-se toda uma comunidade, uma forma de viver, uma cultura.
Foi no primeiro dia do ano de 1941, com a Segunda Guerra Mundial engolindo o que ainda havia de humanidade, que John Steinbeck escreveu ao amigo e padrinho literário Pascal Covici:
— Adentramos este Feliz Ano-Novo sabendo que nossa espécie nada aprendeu, nada sabe aprender — a experiência de 10 mil anos não deixou qualquer marca sobre os instintos do milhão de anos anteriores. Não que eu tenha perdido a esperança... Imensa bondade e heroísmos haverão de surgir novamente e serão esmagados de novo. E ressurgirão. Não digo que o mal vence — jamais vencerá —, digo apenas que ele não morre...
Dorrit Harazim, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com/