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Zidane e o ‘globalismo’: a cabeçada da dignidade

O insuperável Eric Hobsbawn, no seu “Um tempo de rupturas” (2013), escrevendo sobre “este mundo novo, complicado, multidimensional” -movimentado por combinações constantes- pergunta se ele “trará  a esperança de uma maior fraternidade entre os seres humanos?” A seguir responde que “nesta época de xenofobia parecemos estar muito longe desta confraternização”.

O historiador então prossegue o seu raciocínio de forma surpreendente: “Não sei. Mas penso que talvez encontremos a resposta nos estádios de futebol do mundo. Porque o mais universal de todos os esportes é, ao mesmo tempo, o mais nacional. Hoje em dia, para quase toda a humanidade esses onze jovens sobre um campo são os que representam a “nação”, o Estado,o “nosso povo”, em lugar dos políticos, as constituições e os desfiles militares.”

Constatando que nos clubes nacionais de “maior êxito” não é incomum ter apenas dois ou três jogadores nativos, Hobsbawn reconhece -nos jovens mercenários e milionários do esporte mais popular da mundo- um impulso à comunhão transnacional. Na França, um país que “se abriu à imigração”, a maioria se sente orgulhosa de formar sua seleção e seus clubes mais importantes com africanos, afro-caribenhos, bérberes, celtas, bascos e com “filhos de imigrantes ibéricos e da Europa Oriental.”

A celebração desta comunhão pelo esporte, como indício, mais além da unidade de nações em alianças para a guerra, compõe -segundo Hobsbawn- um quadro sutil de onde pode se retirar alguma pinceladas de esperança. Aliás, a exportação da subversão fascista em todo o mundo, através da criação de novas identidades baseadas no negacionismo científico, no ódio ao diferente e no fundamentalismo religioso, também é destinada a frustrar e a extinguir quaisquer esperanças para um mundo humanizado pela solidariedade e pela igualdade.

A invasão multiétnica “pelo alto” permitiu -exemplifica o historiador- que Zinedine Zidane, filho de imigrantes muçulmanos da Argélia se tornasse o “melhor dos franceses” -independentemente da sua origem étnica- mostrando que as barreiras racistas não são invencíveis, que a xenofobia não é o estado permanente da alma francesa, mas uma contingência histórica. As pessoas que são julgadas pela cor da sua pele, sua língua e sua religião, também podem ser avaliadas pelo seu talento, pela sua capacidade de vencer e lutar por um objetivo comum, bem mais além do sentido “nazi” da unidade pela violência, pela supressão do diferente, pela exaltação irracional da raça ou do passado distorcido e romantizado.

O que parece inusitado na reflexão do grande historiador, na verdade é o prosseguimento -quase no final da sua vida- do mesmo método de observação histórica que guiou seus estudos e publicações, ao longo da sua fértil relação científica, acadêmica e política, com o mundo no Século XX: a evolução da economia capitalista mundial, na sua reprodução concreta, cria ardis que as teorias muitas vezes não alcançam, mas que -de repente- as subjetividades coletivas expõem, ou na sua grandeza ou na sua miséria. Às vezes em ambas.

O  nacionalismo radical dos países ricos, por exemplo, pautando uma contra-tendência à  dominação do globalismo do Século XX, talvez tenha sido entendido de forma mais completa -como “necessidade” política urgente- pelos analistas da extrema-direita, do que pelos teóricos social democratas e socialistas. Quando Zidane – capitão da seleção francesa na vitória da Copa em 2006 – foi expulso de campo por dar uma cabeçada no peito de Marco Materazzi, o italiano que lhe chamara de “sujo e terrorista”, ambos

representaram aquela tensão em disputa.

Naquele momento a conquista do respeito “pelo alto” gerava uma “contratendência”, pois o descendente

argelino de família muçulmana -no particular- deu a cabeçada da Revolução Francesa no peito estufado do Fascismo redivivo: as ideias de Mitterrand e Berlusconi num incidente do futebol mundial. Ali o globalismo nacionalista não unificou, pois o que se expressou entre dois jovens, com formações diferentes e origens nacionais distintas, foi a luta entre o ódio e a dignidade pela razão humanista.

O “globalismo” nacionalista dos países ricos, como propuseram Trump e sua gangue, ao mesmo tempo

que estimulou os “chauvinismos” locais, também possibilitou a monopolização dos delitos mais graves -que dele derivam- pelos Estados Nacionais. Os imigrantes mexicanos em campos de concentração na fronteira mexicana e o roubo de Fundos -destinados à “construção” do Muro- pelo esquema Bannon, são crimes evidentes. A contrapartida ao nacionalismo radical americano esposado por Trump -no novo Brasil-colônia da era Bolsonaro- é o negacionismo radical da ciência e a necrofilia armamentista, que amplia o esquema miliciano de poder.

Estas contrapartidas só são aceitas como simulacros de “políticas externas” ou “internas”, em circunstâncias críticas de disputa pela hegemonia, para evitar uma guerra ou promovê-la. Trump, na verdade, promove uma guerra contra o Brasil, à medida que estimula com Bolsonaro a violência miliciana e o ódio à democracia. Bolsonaro e seu esquema de poder, encetam uma guerra contra e República e a dignidade política da Carta de 88. Onde vai nos levar tudo isso? Vai nos restar, como alternativa, apenas a cabeçada de Zidane?  Ela pode ter sido uma metáfora da resistência, num tempo em que o ódio não cessa de surpreender e a solidariedade  é sufocada pelo desprezo a “tudo que é humano”, tornado estranho pela

peste do fascismo.


Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

Fonte: https://www.sul21.com.br

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