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Vladimir, o Terrível

Há uma figura histórica na qual Vladimir Putin se espelha: Ivã, o Terrível, fundador do czarado e primeiro autocrata a assumir o poder como o Czar de Todas as Rússias, em 1547. Explosivo, paranoico e implacável, Ivã IV – seu nome oficial – inspirava terror a outros povos e à sua própria corte.

A ferro e fogo transformou seu país em um estado multiétnico, com um território de quase um bilhão de hectares. O império russo construído por ele tinha como pilar a concepção de que a pequena Rússia (Ucrânia), a Rússia Branca (Belarus) e a Grande Rússia eram constituídas por um mesmo povo e partes indissolúveis de uma mesma nação.

O Império Russo existiu até a vitória da revolução bolchevique de 1917, e seu conceito continuou praticamente intocável na formulação da União Soviética. O mesmo estado forte concentrado nas mãos de um autocrata, no qual a Rússia era a mais igual entre repúblicas teoricamente iguais, se manteve inalterado até o fim da “Pátria-mãe do socialismo”. Não por acaso, Ivã, o Terrível, também era admirado por Stalin.

O fim da União Soviética gerou um mundo unipolar com a divisão do império bolchevique em quinze países independentes. É no quadro de uma Rússia enfraquecida e sem autoestima que surge a figura de Vladimir, o Terrível do terceiro milênio. Sua personalidade tem os mesmos traços de seu ancestral: paranoico e implacável na sua obstinação de reconstruir o antigo Império Russo.

Putin surge em uma Rússia nostálgica e sem cultura democrática. Saiu do czarismo para a ditadura do partido único e do regime bolchevique, constituiu-se em um capitalismo de estado autocrático. Uma pesquisa de 2017 apontou Joseph Stalin e Vladimir Putin como as duas personalidades mais admiradas pelos russos.

Na Rússia pós-socialismo real, a “acumulação primitiva” se deu com membros da antiga burocracia partidária e dos serviços de segurança, que se transformaram, da noite para o dia, em capitalistas, ao comprar a preço de banana antigas empresas estatais. O próprio Vladimir Putin vem daí. O núcleo duro de seu governo também está povoado por ex-membros da KGB e de seu sucedâneo, o FSB.

Na guerra da Ucrânia o presidente russo inicialmente camuflou o seu real objetivo estratégico – a reconstrução do Império Russo – sob o pretexto de se basear em uma reivindicação reconhecida por legítima por muitos especialistas e historiadores.

Quando foi à TV para anunciar a sua guerra, reencarnou o espírito de Ivã, o Terrível ao declarar que a Ucrânia jamais deveria ser um país independente. E ainda criticou Lenin por ter dado o status de república ao país ucraniano.

Como a roda da história não gira para trás, o delírio da reconstrução do antigo Império Russo é impossível. Nem mesmo a “união de todas as Rússias”, que parece ser seu objetivo imediato. O teatro de operações no qual Putin se move não é o mesmo dos primórdios do czarismo.

Falta combinar com os russos, ou melhor, com os ucranianos. E mais ainda com o restante do mundo.

Ao ameaçar apertar o botão da arma nuclear, o Ivan do século 21 deu provas de não ter limites na sua paranoia. Pode ser um blefe, mas não se deve subestimar um autocrata calculista e frio. O uso de bombas fragmentárias e de mísseis termobáricos, ambos com imenso poder de destruição, está no seu cardápio de terror.

Se leu o artigo de Kissinger, “Como o conflito da Ucrânia termina”, Putin parece não ter entendido nada. Se meteu numa guerra que não sabe como termina para seu próprio povo e seu país. Cometeu o mesmo erro de Stalin de 1939, na “guerra de inverno”, entre a União Soviética a Finlândia. O ditador soviético pensava que seria um passeio, uma guerra de poucos dias e indolor. Levou três meses e teve de pagar um preço altíssimo em termos de derramamento de sangue do seu próprio povo.

Inegavelmente os russos enfrentam uma resistência dos ucranianos que não estava nos planos. Podem, ao final, até dominar Kiev, mas a estratégia de uma blitzkrieg entrou em colapso. Batalhas urbanas costumam ter um preço altíssimo. Vide Stalingrado e a batalha de Berlim. O soldado russo é excelente quando trata de defender a sua própria pátria. Derrotaram Napoleão e Hitler, mas, certamente, sua determinação não é a mesma numa guerra onde desempenham o papel de agressor.

O autocrata russo já perdeu uma guerra muito maior: a da opinião pública. Está absolutamente isolado no concerto das nações. Uma guerra é envolve muitos fatores, não só o poderio bélico. Os fatores extra palco de operações pendem desfavoravelmente para Putin. O rublo desvalorizou-se e os juros subiram exponencialmente, já como reflexo das represálias econômicas ao seu país.

Mais dia, menos dia, a opinião pública russa se colocará em sintonia com o sentimento mundial. A guerra não é um bom negócio para ninguém. Se o plano de Putin é reconstruir o império czarista, sua estratégia pode levar a abreviar a sua era.

Volta-se a Ivã, o Terrível, que, em um dos seus surtos paranoicos, matou o próprio filho. Vladimir, o Terrível, pode matar todos os filhos do mundo se apertar o botão nuclear. Impedi-lo passou a ser uma questão de sobrevivência da humanidade.


Hubert Alquéres é membro da Câmara Brasileira do Livro, da Academia Paulista de Educação, do Conselho Estadual de Educação e do Conselho Diretor do Instituto Mauá de Tecnologia. Também é diretor do Colégio Bandeirantes.

Fonte: https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos

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