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Para entender a crise da semana

Para entender a crise da semana

Argentina é geografia, é destino. Ela está à nossa porta e sempre estará. Desta vez, a proximidade serve para nos lembrar que a extrema direita está viva e à espreita. Na mesma semana em que Javier Milei foi eleito, o Brasil entregou-se a um episódio de conflito entre Poderes, desnecessário, extemporâneo e com perigoso potencial desestabilizador. Abala as bases da democracia que estávamos reforçando após o ataque da extrema direita.


No caso desta semana, o Senado errou e o Supremo Tribunal Federal (STF) está certo. Não me convencem os argumentos de que há algum mérito nas ideias postas na PEC. Nada existe de aproveitável numa proposta com tantos vícios de origem.

É importante conhecer o fio dos eventos da semana. Na segunda-feira, na reunião do Conselho Político, os palacianos e líderes parlamentares reconheceram que havia muita divisão na base governista a respeito da PEC sobre os ritos do Supremo. O governo decidiu então liberar a base. Mas não liberar os líderes, por óbvio.

O voto do líder do governo no Senado, Jaques Wagner, pegou alguns ministros de surpresa. Ao ser anunciado, carregou com ele, pelo menos, mais quatro votos. Isso significa que o senador baiano, ex-governador, amigo próximo do presidente Lula há 50 anos, deu o passo decisivo que garantiu a aprovação de um projeto nascido no coração da agenda antidemocrática. Todos os outros petistas votaram contra, o senador Humberto Costa discursou pedindo a rejeição e chamando o projeto de inoportuno. Mas a declaração Wagner foi o divisor de águas. A crise instalou-se na República na quarta à noite.

Os ministros da área econômica preocuparam-se duplamente quando o conflito se instalou. Foi uma noite indormida para eles, informa uma fonte sobre a travessia entre a quarta e a quinta. Projetos estão sendo votados no Senado para aumentar a arrecadação e que são parte da agenda de fechar torneiras da injustiça tributária.

No Supremo, ações decisivas estão sendo avaliadas para o ajuste fiscal. Uma delas, a dos precatórios, pode desarmar a bomba deixada pela ruinosa gestão econômica do governo anterior. A solução que o ministro Haddad sugeriu e o advogado-geral da União, Jorge Messias, apresentou ao STF é a de considerar inconstitucional a lei que permitiu ao governo não pagar parte das dívidas judiciais vencidas e jogar para 2027. Haddad quer pagar já, mas com crédito extraordinário, e considerando os juros despesa financeira. Essa engenharia interromperia a bola de neve fiscal.

Depois do conflito, foram adiados tanto o julgamento dos precatórios no STF, quanto os projetos de aumento de arrecadação no Senado. O temor da equipe é ter sua agenda atingida no fragor da batalha.
Algumas dúvidas remanescem. Por que mesmo o senador Rodrigo Pacheco abraçou tão fortemente uma proposta bolsonarista? O que levou o líder do governo a entrar em uma canoa furada com a experiência que tem? Até que ponto o presidente Lula sabia da decisão do seu fraterno amigo Jaques Wagner?

Pacheco quer disputar o governo de Minas e fazer seu sucessor no Senado. Estaria tentando reencontrar o eleitor mais conservador. Jaques Wagner não se sabe o que faz apoiando uma PEC nascida do projeto autoritário de Bolsonaro que, como se sabe, tinha como inimigo o Supremo Tribunal Federal.

Quanto ao presidente Lula, ele correu para a operação redução de danos. Em um encontro com o ministro Luís Roberto Barroso, na manhã da quinta, teve uma “boa conversa privada institucional”, segundo eu soube. À noite, Lula jantou com dois outros ministros do STF.

Sobre o mérito do conflito, é bom entender: não são as decisões monocráticas que estão em foco. Os chefes do Poder Legislativo também tomam solitariamente inúmeras decisões cruciais. O presidente da Câmara pode engavetar sem explicações um processo de impeachment de presidente.

O Supremo, como disse o ministro Barroso, enfrentou o negacionismo na pandemia, o negacionismo ambiental, e foi dique de resistência contra o autoritarismo. Em todos os países onde a extrema direita avança o alvo favorito é o Judiciário. Aqui, quando vimos a face do abismo, o STF resistiu. Isso não o torna imune a críticas, nem dispensa aprimoramentos. Mas interferir no Supremo é um caminho que não devemos trilhar. Que a Argentina, ao entrar agora em terreno movediço, tenha sorte e leve a sério as experiências de outros países. Inclusive a nossa.

Míriam Leitão, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com/

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