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Pacificação, civilidade e recomeços

Pacificação, civilidade e recomeços

Na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964, um golpe de Estado destituiu João Goulart da Presidência da República. Golpe, porque esse é o nome que se dá em ciência política e em teoria constitucional para as situações em que o chefe de governo é afastado por um procedimento que não é o previsto na Constituição. As palavras precisam ser preservadas em seus sentidos mínimos.

É certo, também, que a quebra da legalidade constitucional contou com o apoio de inúmeros setores da sociedade, como boa parte das classes empresariais, dos produtores rurais, da classe média e da Igreja, assim como dos militares e da imprensa, além dos Estados Unidos. Cada um desses atores com seus temores próprios.

Ali começou uma longa noite institucional. Passaram-se 25 anos até que houvesse uma eleição presidencial pelo voto popular. No período, tivemos uma longa sequência de atos institucionais, que exprimiam a legalidade paralela e ditatorial do regime militar. Com eles, os partidos políticos existentes foram extintos, as eleições passaram a ser indiretas, o Congresso foi fechado diversas vezes, parlamentares foram cassados, bem como professores e servidores públicos aposentados compulsoriamente. Muita gente foi para o exílio. Nas sombras, também vieram a tortura de adversários políticos e a censura.

Depois se seguiram os anos de chumbo, a abertura política e a agonia do regime autoritário, cuja morte moral se deu em 1981, com o acobertamento do atentado do Riocentro. Mais à frente, mesmo derrotada a emenda das eleições diretas, Tancredo Neves e José Sarney vieram a ser eleitos. A Nova República se iniciou sob o símbolo trágico da morte de Tancredo. Em 1986, uma emenda constitucional convocou a Assembleia Constituinte que elaborou a Constituição de 1988, cujo aniversário celebramos.

Com a promulgação da Constituição, tivemos uma rearrumação geral e democrática do país, com avanços expressivos, atrasos persistentes e alguns sustos. Os Poderes voltaram a ser harmônicos e independentes, com as fricções próprias e inevitáveis às democracias. O Executivo voltou a seu tamanho natural, o Legislativo se expandiu, e o Judiciário viveu um momento de expressiva ascensão institucional.

Nos direitos fundamentais houve avanços muito relevantes. O Sistema Único de Saúde, com todas as dificuldades, é um admirável programa de inclusão social. Na educação, universalizou-se o ensino fundamental, embora ainda se viva o drama da evasão no ensino médio. Mulheres, gays, negros e indígenas viram preconceitos e discriminações ser derrotados, numa luta ainda em curso. A proteção do meio ambiente entrou finalmente no radar do país.

Muito ainda ficou por fazer, da desigualdade abissal à apropriação privada do Estado, das dificuldades do sistema político à violência urbana. Por ora, no entanto, há uma palavra mágica para voltar a reunir as pessoas em torno de um projeto de país: pacificação. A democracia tem lugar para liberais, progressistas e conservadores. Ninguém tem o monopólio do bem e da virtude. É preciso acabar com a cultura agressiva e intolerante de desqualificar quem pensa diferente. Precisamos de um choque de civilidade.

Nos diferentes tons do espectro político, há um consenso: de um país aquém do seu destino. Essa a razão de certo mal-estar civilizatório entre nós, a frustração de não sermos tudo o que podemos ser. Porém a História não é um destino que se cumpre, mas um caminho que se escolhe. E, além disso, como o Brasil pós-eleição de 2022 bem demonstra, o mundo dá voltas. A existência das pessoas e das nações é feita de muitos recomeços. De oportunidades que se renovam. O futuro se atrasou, mas ainda está no horizonte.

Luís Roberto Barroso é presidente do Supremo Tribunal Federal

Fonte: https://oglobo.globo.com/

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