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O gato enterra, a história soterra

Em plena pandemia milhares de brasileiros chacoalharam as ruas pela quinta vez, no final de julho/2021. Foi o mais expressivo protesto contra o capitão, responsável pelo morticínio de mais de 550 mil brasileiros. Vítimas inocentes da inação, fraudes científicas, omissão e corrupção no enfrentamento à Covid-19. A estátua de um outro facínora, Borba Gato, acabou esturricada. São 2 capitães do mato. As labaredas desencadearam discussões flamejantes sobre vandalismo, estratégia dos protestos e a própria história brasileira.

Além da alta octanagem, as manifestações adquiriram números superlativos após muitas denúncias de propinas e incompetência da gestão Jair Bolsonaro, notadamente no Ministério da Saúde. Por lá um pelotão de gatunos fardados, incapazes e desonestos, ressuscitaram as entradas e bandeiras da rapinagem, garimpando ouro e o que mais brilhasse nas picadas milionárias abertas pelas vacinas.

A gatunagem na Saúde arranhou altas patentes: generais, coronéis e outras divisas. Desprezando a sutileza silenciosa dos felinos conspurcaram as Forças Armadas em negociatas de arrepiar. A Covaxin, atravessada por um trambiqueiro freguês do Estado, se enroscou no tapete verde-oliva do General Eduardo Pazuello, sempre ele. Conseguiu celeridade ímpar, superfaturamento e nenhuma dose entregue 5 meses após assinar o contrato de R$ 1,6 bi. Uma ninhada estridente de ilegalidades expostas pela CPI e ignorada pelo governo. O produtor do imunizante, a Bharat Biotech, diante de gambiarras grosseiras, rompeu o contrato com a intermediária, a Precisa Medicamentos.

O dono da Precisa, Francisco Maximiamo, já dera um calote de R$ 20 milhões no MS na gestão Ricardo Barros. O mesmo Barros, ainda líder do governo 4 meses depois ser denunciado. O mesmo Barros patrono da emenda que liberou a importação da Precisa. O mesmo barro da coincidência, a mesma lama do cinismo.

Outro grupo de mercenários fardados se engalfinhou na aquisição de milhões de imunizantes da AstraZeneca com estelionatários que não representavam vacina alguma. Foram inúmeras reuniões, propostas formais, troca de documentação e um reverendo miando proximidade com o inquilino da casa, Bolsonaro. As mais altas patentes sanitárias do País, ávidas pelo ‘pixuleco’, viraram um balaio de gatos e foram tapeadas por vigaristas. O general Pazuello, ícone da incompetência e homiziado no Palácio do Planalto, estrelou um vídeo dentro do Ministério da Saúde negociando vacinas da Coronavac pelo triplo do preço, com outro intermediário.

Tudo ali, no fio do bigode. Sorrateiro e dissimulado, Pazuello disse à CPI que não recebia empresários quando ministro. A gravação é de março de 2021, quando o Brasil já tinha contratado a Coronavac. O representante exclusivo no Brasil é o Instituto Butantan, que soou o guizo e alertou o governo sobre o monopólio. Afinal, gato escaldado tem medo de água fria.

O bandeirante Manuel de Borba Gato é da mesma linhagem dos gatunos das vacinas. Era um assassino ganancioso, genocida inescrupuloso, escravagista e ladrão. O passivo vergonhoso dele e de outros bandoleiros nacionais não legitima ou justifica a depredação de obras públicas ou a tentativa estéril de apagar as páginas mais pálidas da nossa desonrosa história. Bolsonaro, sua ninhada fardada e fedida, alvos da fúria incandescente das ruas, são a alegoria do Brasil colonial de Borba Gato. O capitão da donataria é um roedor da democracia, vadio que gosta de predicações golpistas, sabota a ciência e tem desvarios monárquicos. É a síntese imorredoura do Brasil colônia, dos tempos dos bandeirantes: anacrônico, belicoso, primitivo, opressor, delinquente, desprezado pelo mundo e condenado a ruína, exatamente como foi a colonização portuguesa.

O modelo de concessão das donatarias para capitães colapsou rapidamente no Brasil. De 15 capitanias, 12 foram concedidas a capitães e seus parentes. Os militares não tinham, e ainda não têm, aptidão, formação ou talento para administrar o Estado. São devotos das armas, do conflito, da beligerância e da morte. Em sua maioria, são inexperientes administrativamente, politicamente despreparados, obtusos intelectualmente e sem projetos para desenvolver o que lhes foi confiado. À exceção de duas donatarias, os capitães naufragaram no Brasil e colônia afundou na incompetência dos ancestrais de Bolsonaro. Uma das mais perversas heranças – as sesmarias – nos amaldiçoaram para a eternidade. É a gênese do modelo de concentração fundiária, da escravidão, da monocultura, dos jagunços e da estratificação social brasileira que nos condenou indelevelmente.

Estarrecedor é que, constrangidos a exumar as misérias da nossa história, quase sempre nos deparamos com uma linhagem de vilões, assassinos, malfeitores, contrabandistas e outros meliantes. Após o descobrimento e durante as primeiras 3 décadas de descaso da coroa portuguesa, o país esteve entregue a saqueadores, mercenários, náufragos, traficantes, corsários e delinquentes de toda ordem. São os nossos primórdios. Terra de ninguém, ilha do desdém. Borba Gato, revisitado após a queima da estátua, é apenas mais um celerado na densa selva de ogros, matadores, grupos de extermínio, milicianos e larápios. Bolsonaro, além de estátua gerencial em combustão, é um Borba Gato de terno, reles capitão do mato com a mesma índole sanguinária. Ele não chegará a ter bustos a serem vandalizados no futuro. Queimará em vida a sua já esturricada reputação, antes das distinções em ferro ou mármore.

A anárquica colonização da coroa Portuguesa transcorreu em meio ao sebastianismo ou mito sebástico. Um fenômeno de idiotia e crendice popular envolvendo o falecimento de rei português, D. Sebastião, “O Desejado”. Abatido em uma batalha na África e sem a localização do corpo, disseminou-se um messianismo de salvação através do renascimento do rei. A espera do ressurgimento do mito salvador se espalhou rapidamente. Em meio ao surto de uma pandemia dizimadora – a peste negra que matou D. Manuel, o Venturoso – deu-se o arrendamento brasileiro aos capitães, a leste de Tordesilhas. Com eles inaugurou-se uma maldição, um flagelo pago em vidas até os dias de hoje. É neste anacronismo obscurantista, nessa cripta da ignorância, mitômana e acrítica que o capitão do mato Bolsonaro deseja afundar o País.

Antevendo que será escorraçado pela democracia – como foi expelido do exército – o capitão delira em arbitrar regras absolutistas. Ele e sua corte feudal, composta por militares aparvalhados, bobos da corte, incapazes e ladravazes renomados do Centrão, julgam que dominam um burgo privado, povoado por vassalos submissos e resignados. Em seu delírio monárquico planeja retroagir no tempo e reciclar uma borra da monocultura corrupta, símbolo do atraso e da fraude: o voto impresso. Mão de gato golpista, despudorada e pré-datada, tão malcheirosa e inútil quanto papel higiênico usado. As urnas eletrônicas são seguras, céleres e auditáveis. Urnas grávidas com cédulas previamente preenchidas, mais votos que eleitores, compra de votos, voto de cabresto, urnas desaparecidas são fraudes típicas da modalidade impressa.

Os desvarios bolsonaristas encontraram ecos no saco de gatos da caserna, em um amotinado de quepe, porta-voz dos rebenques da ruptura. Braga Neto que já distribui notas golpistas por aí, agora acha que pode se imiscuir em eleições e ameaçar o Estado Democrático de Direito. Devaneia que o “braço forte” silencia a democracia ou esconde a mão leve dos militares na pandemia. Diante das revelações da CPI sobre a corrupção dos coturnos, tentou intimidar o Senado da República. Depois ameaçou as eleições e as instituições com quarteladas. Em nota oficial insistiu no voto impresso. Mais um golpe fardado ao fracasso, como ocorreu no meio de 2020 nos arreganhos contra STF e Congresso Nacional. De lá para cá o capitão, sua tropa maltrapilha, filhos encrencados e aliados problemáticos derreteram política, administrativa, econômica e eticamente. Hoje são eunucos, farrapos políticos.

O trote do atraso tem contradições intransponíveis. Jair Bolsonaro foi um ocioso deputado federal por 7 mandatos, tão indigentes quanto a Presidência. Seu filho golpista e chapeiro, Eduardo Bolsonaro, já está no 2 mandato como federal. Flávio Bolsonaro, denunciado por corrupção na Assembleia do Rio de Janeiro, acumula 4 mandatos de deputado estadual e agora senador. Carlos Bolsonaro, a sombra visível do gabinete do ódio, já está no 6 mandato como vereador. São mais de 20 mandatos populares obtidos no voto eletrônico. Fizeram fortuna e um patrimônio suspeito a partir do dinheiro público. Diante da derrota eleitoral iminente, as urnas passaram a ser inservíveis e suscetíveis às fraudes nunca insinuadas ou provadas. Aprendam com Trump, expelido pelo voto impresso: parem a bobagem antes da contagem.

O voluntarismo golpista de Braga Neto é tacanho. Estrategista míope, não divisa que os militares são manipulados como instrumentos de atemorização e instabilidade. Se tirasse as vendas de cavalgadura contaria as baixas militares, sacrificadas por Bolsonaro nas batalhas recentes. São mais de 10 generais abandonados por um comandante que, sitiado, sempre entrega facilmente seus soldados.

A nova bucha de canhão é o general Luiz Eduardo Ramos que confessou ter sido “atropelado por um trem”. Foi degolado da Casa Civil em favor do senador Ciro Nogueira, motorneiro do bonde chamado desejo, o Centrão. Primeiro alvo do novo maquinista do trem pagador e desgovernado foi Braga Neto, exposto ao Brasil como chefe da quartelada. Só Braga Neto não viu de onde o tiro partiu. Só Braga Neto ignora que o Centrão tomou o governo de assalto. Braga Neto não viu o gato na tuba. Por isso faz fora da caixinha.

Braga Neto é desprezível como pessoa e indigno como militar. Se honrasse a farda e o contribuinte que banca seu salário de gato gordo, se espelharia no chefe das Forças Armadas dos EUA, que conhece a dimensão de suas responsabilidades. Ao ser fotografado ao lado de Donald Trump, Mark Milley se desculpou publicamente. “Eu não deveria ter estado lá”, disse em um discurso em vídeo que gravou para exibição no início do ano letivo na Universidade Nacional de Defesa.

“Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna. Como oficial da ativa uniformizado, foi um erro com o qual aprendi”, disse. “Devemos defender o princípio de um Exército apolítico que está tão profundamente enraizado na própria essência de nossa república. Isso leva tempo, trabalho e esforço, mas pode ser a mais importante coisa que cada um de nós faz a cada dia.”

Os gatunos de botas – premiados com cargos civis na capitania bolsonarista – são da mesma estirpe de Borba Gato: vira-latas estridentes tentando entoar a sinfonia de que, na cama de gato golpista, todos felinos são pardos. Para manter salários além do teto, privilégios na aposentadoria, pensões vitalícias, o leitinho condensado e superfaturado da tropa, farra de diárias, desvios de orçamentos da pandemia, propinas e outras mamatas o pulo do gato é a virada de mesa. Com as centelhas crepitando, podem acabar espetados como churrasquinho. O suposto piromaníaco da estátua foi preso, Paulo Galo. Os gatos do governo baldio seguem soltos, mas a democracia não troca gato por lebre. Eles não têm sete vidas, nem fôlego de gato para arranhar a democracia. O que fizeram, acumpliciados com Bolsonaro, é o que o gato e a história enterram.


Weiller Diniz, jornalista

Fonte: https://osdivergentes.com.br

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