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O dilema eleitoral de Bolsonaro

O dilema eleitoral de Bolsonaro

O ano de 2024 será decisivo para definir o lugar e a importância futura da liderança pessoal de Bolsonaro. É claro que o conservadorismo tem um grande número de adeptos no Brasil atual. Também é evidente que o bolsonarismo é um movimento político-social que domina parte relevante do eleitorado. Mas o ex-presidente, sua família e os líderes mais próximos dele vão ser muito expostos negativamente ao longo dos próximos meses, com investigações, indiciamentos e até possivelmente prisões. Daí nascerá um dilema em meio às eleições municipais: priorizar a defesa da principal liderança bolsonarista ou tentar ser competitivo, com candidaturas mais moderadas, para enfraquecer o lulismo?

Em contextos democráticos, a combinação de eleições com processos judiciais sempre é problemática para partidos e lideranças políticas. No passado, o malufismo e o petismo passaram por maus bocados quando tal conjunção astral ocorreu. Sempre haverá um eleitorado fiel que não acreditará nas investigações e acusações, contudo, a hegemonia política exige apoio para além dos devotos de um grupo. O lulismo é maior do que o PT porque foi além de seu público cativo; Bolsonaro ganhou a eleição de 2018 pois teve votos além dos radicais de extrema direita.

A polarização política cresceu na política brasileira, tomando conta da maior parte do eleitorado. Só que há ainda uma parcela que não se filia automaticamente ao lulismo ou ao bolsonarismo. Não é o maior contingente de eleitores, mas tem o número suficiente para decidir o jogo quando ele está quase empatado. Isso é ainda mais verdadeiro no plano municipal, onde a necessidade de ter de escolher “um dos lados” pode levar em conta tanto questões locais - a avaliação do prefeito, por exemplo - quanto elementos conjunturais, como a exposição de escândalos e situações negativas que só os muitos devotos não levam em consideração.

O mais provável é que a longa exposição de muitos possíveis crimes - apropriação indébita de joias, arapongagem, tentativa de golpe de Estado ou incompetência premeditada no combate à pandemia de covid-19 - vai atingir a imagem de Bolsonaro e seus aliados políticos mais radicais junto à parcela decisiva do eleitorado. Os mais fiéis não vão mudar de lugar.

Todavia, esse contingente é claramente insuficiente para ganhar eleições nas principais capitais do país. Uma parcela da direita que não quer estar atrelada ao radicalismo de extrema direita e silenciosamente deseja se livrar do bolsonarismo, sonha em construir um conservadorismo menos estridente e livre dos escândalos.

Também é importante ressaltar que as eleições municipais não dirão respeito apenas à disputa entre o governo e a oposição no plano federal. Há dinâmicas locais que colocam vários partidos que apoiam o presidente Lula em lados opostos na disputa eleitoral. Nas cidades menores e mesmo médias, questões vinculadas à avaliação do prefeito, ao poder de influência do governador e à obtenção de recursos federais podem ser mais decisivas do que a polarização.

O jogo entre lulismo versus bolsonarismo vai ser mais decisivo principalmente nos maiores municípios, com maior ênfase em algumas capitais. Entretanto, mesmo nesses casos, questões locais e o eleitor para além da polarização terão um peso estratégico na definição do resultado.

O caminho originalmente combinado entre Bolsonaro e Waldemar Costa Neto era o de lançar nas maiores cidades dois tipos de candidatos. Em alguns casos, seriam bolsonaristas raiz, como Alexandre Ramagem no Rio de Janeiro. Noutros casos, a opção seria por um perfil mais moderado e que ultrapasse as fronteiras do bolsonarismo, como Ricardo Nunes em São Paulo. A aceleração dos múltiplos processos de investigação vinculados ao grande líder eleitoral do grupo e a seus mais fiéis aliados - incluindo aí os filhos - pode embaralhar o plano inicial.

No fundo, o que está em jogo é se Bolsonaro, mesmo na berlinda, vai conseguir manter seu peso político dentro das forças mais à direita ou então se outros líderes direitistas vão conseguir, paulatinamente, se distanciar da figura da liderança que os ergueu nos últimos anos, buscando construir um conservadorismo com apelo mais amplo.

Claro que as eleições municipais não irão definir por completo tal jogo. Não obstante, uma possível prisão de Bolsonaro e/ou de um membro de sua família, junto com outros bolsonaristas raiz, terá um efeito muito forte sobre o eleitorado de centro. Tal situação talvez até comece a mudar a posição de conservadores que não gostariam de apoiar um “malvado favorito” que esteja atrás das grades.

A situação dilemática de Bolsonaro fica mais evidente quando se recorda o que aconteceu com o petismo em meio à Lava-Jato e ao impeachment da presidente Dilma. Naquele momento, defender o partido e sua liderança maior, independentemente dos resultados das eleições de 2018 e 2020, foi a opção dos políticos petistas. Isto custou, primeiro, a perda de cadeiras no Congresso Nacional e, depois, uma grande derrota nas eleições municipais. Mas a defesa de Lula não só manteve o eleitorado cativo mais unido como permitiu construir uma narrativa que possibilitou o ressurgimento do lulismo em 2022. A lição desse episódio é puramente maquiavélica: que quem quer ser hegemônico por vezes pode optar por perder no curto prazo para salvar o chefe maior e seu projeto de poder.

Se Bolsonaro deseja ser o grande líder da direita nos próximos anos, sendo o condutor e não o conduzido, ele precisará de muitos candidatos nas eleições municipais que o defendam frente à tempestade perfeita que enfrentará no plano judicial em 2024. Há boas chances de fatos ainda mais explosivos serem revelados, tornando o que surgiu até agora apenas um aperitivo. Os indiciamentos poderão acontecer mais rápido que se imaginava no ano passado e a prisão de um dos filhos ou do próprio Bolsonaro, bem como de alguém do entourage mais próximo de radicais, aparecerá com destaque nas principais campanhas municipais. Quem arriscará perder a disputa a prefeito para defender o ex-presidente, eis a pergunta que deveria ser feita por toda a família Bolsonaro.

Uma resposta alternativa a essa situação seria a de que direitistas moderados não só têm mais chances de conquistar a maioria dos votos como, a partir da conquista do poder, poderiam futuramente salvar o núcleo duro do bolsonarismo das questões judiciais. É uma crença similar à que teve Sergio Moro quando aceitou participar do governo Bolsonaro. Com essa decisão, acreditava ele, seria consolidada a derrota do lulismo, seu maior adversário, e de quebra Moro seria posteriormente indicado para o STF ou então se tornaria a liderança natural para conduzir a direita quando o eleitor conservador percebesse o quanto o presidente então eleito era tosco. Parece-me que esse raciocínio foi o começo do fim do lava-jatismo.

A mesma coisa pode acontecer com Bolsonaro e família caso acreditem que irão sofrer agora, apanhar por meses e talvez perder a liberdade, mas depois voltarão novamente ao pináculo do poder graças ao sucesso eleitoral de uma direita moderada. Ou seja, o núcleo duro do bolsonarismo será pouco ou quase nada defendido nas eleições municipais - e talvez também mais adiante nas disputas estaduais e nacional -, só que isso não deveria ser preocupante, pois os herdeiros da política bolsonarista nunca esquecerão de quem tirou do armário o eleitorado conservador e o fez crescer.

Tal hipótese não é absurda, nem impossível de ocorrer. O problema é que geralmente quem quer suceder a uma grande liderança de seu próprio grupo, sobretudo quando esta ficou desgastada ou se tornou tóxica no curto prazo, procura afastar-se gradativamente do “pai fundador” do movimento.

Não se pode esquecer que há objetivos conflitantes entre três tipos de liderança que hoje comandam a direita no Brasil. Waldemar Costa Neto quer eleger mais gente, ter mais fundo partidário e eleitoral, em suma, ter recursos para barganhar poder. Ideologia não é o seu forte, nem lealdade com quem vai parar na cadeia. Governadores de uma direita mais moderada devem, em boa medida, seu poder recente ao apoio que receberam do bolsonarismo. Apesar disso, não querem ficar presos eternamente a um movimento de extrema direita que joga os eleitores de centro no colo do lulismo. O governador paulista, o mais poderoso desse grupo, sonha em estar mais do lado de Kassab do que do seu antigo chefe.

Sobra então Bolsonaro, responsável por impulsionar o crescimento vertiginoso de eleitores conservadores e anti-Lula. Pode-se não gostar dele, mas ele é um líder popular com dimensão nacional inconteste. Só que escândalos político-administrativos sucedidos por processos judiciais com grande apelo junto à opinião pública vão afetar boa parcela do poder do ex-presidente, principalmente, ressalte-se mais uma vez, se ele não tiver um grupo de políticos e candidatos que o defendam agora, no pleito municipal, e nos próximos dois anos.

A pergunta que não que calar é a seguinte: Bolsonaro está preparado e, sobretudo, disposto a perder um poder quase monopolístico para tentar bater o lulismo, ou ainda ele vai querer ser o dono da bola e privilegiar a defesa de sua biografia em vez de apoiar o plano “curtoprazista” de Waldemar? Esse é o dilema que Bolsonaro precisará resolver nos próximos meses.

Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

Fonte: https://valor.globo.com/

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