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Milei reforça onda de ultradireita na América Latina; agora é a vez da Argentina

Milei reforça onda de ultradireita na América Latina; agora é a vez da Argentina

Chegou a vez da Argentina. Javier Gerardo Milei, economista de 53 anos, alcança a Presidência de seu país como a versão platense de uma tendência de governos de ultradireita que vêm atravessando outros países da região.

Suas particularidades são muitas em relação àqueles com quem costuma ser comparado: não tem apreço pelo conservadorismo moral ou pelos militares como tinha Jair Bolsonaro; não evoca ditadores do passado, como o chileno José Antonio Kast; não defende a construção de prisões gigantes nem um Estado hiperpaternalista como o salvadorenho Nayib Bukele; tampouco aprova que o Executivo seja enorme e abocanhe os demais Poderes, como o guatemalteco Alejandro Giammattei.

Mas, sim, Milei se parece com todos eles ao pregar um rompimento com o que considera política tradicional, ao abraçar o politicamente incorreto, ao desconsiderar as políticas de gênero e avançar contra os direitos de minorias e imigrantes, ao estar a favor da liberação do comércio de armas e ao elogiar e exaltar a meritocracia em um país em que isso deveria ser considerado obsceno devido a suas grandes desigualdades.

Nunca a Argentina teve um presidente tão excêntrico como Milei. Carlos Menem (1930-2021) poderia ser uma comparação nesse quesito. Adorava receber presentes caros, como Ferraris; embarcou no delírio da convertibilidade dólar/peso e das privatizações em um país não preparado para isso; esteve cercado de casos místicos em que mortes e intrigas de pessoas próximas a ele e a seu círculo de poder eram comuns; deu indultos a repressores da última ditadura (1976-1983), como a vice de Milei, Victoria Villarruel, deseja fazer.

Como Menem, Milei não esconde sua enorme vaidade, que o faz namorar mulheres do mundo do espetáculo e exibi-las por todos os lados, assim como transmitir a ideia do macho alfa que tem “superioridade estética” com relação aos que pensam diferente.

Também como Menem, Milei não quer saber dos países vizinhos e de se parecer com outros países latino-americanos. Para quem não se lembra, Menem falava em manter “relações carnais” com os EUA. Milei quer chutar o Mercosul em nome da “liberdade” de buscar tratados de livre-comércio com o mundo e se relacionar com “Israel e o mundo ocidental”.

O clássico “Pizza Con Champán” (Sylvina Walger, 1995), que retrata a fervilhante excentricidade dos anos 1990, “dolarizados”, com um presidente meio amalucado no comando do país, merece ser relido hoje como possível referência de coisas que podem ocorrer novamente.

Milei venceu as eleições por conta de um cansaço da população com o kirchnerismo —esta que vem sendo a corrente predominante do peronismo desde o surgimento de Néstor Kirchner, em 2003. Esse cansaço já havia dado mostras de uma escalada antes, abrindo espaço para a eleição de Mauricio Macri em 2015.

Este, porém, também falhou ao não conseguir reduzir a inflação, fazer os ajustes necessários e trazer investimentos. O resultado é que a pobreza aumentou até cifras muito parecidas às obscenas de hoje. Seu governo começou a ruir a partir de 2018, quando decidiu pedir o empréstimo de US$ 56 bilhões ao FMI (Fundo Monetário Internacional), que comprometeria a economia do país nos anos seguintes, junto à pandemia e à grave seca que fez com que o país tivesse um prejuízo de US$ 20 bilhões no ano passado.

Sergio Massa, ministro da Economia há apenas um ano, tem menos culpa do que se pintou contra ele durante a campanha eleitoral. As medidas que Alberto Fernández se recusou a tomar no começo de seu mandato estão mais relacionadas a essa situação econômica agônica na qual o país já arrastava. A má relação entre ele e sua vice, Cristina, e suas diferenças não “acalmaram a economia”. De todo modo, a “narrativa” de que Massa era o culpado pela inflação foi eficiente.

O resultado do fracasso de Macri foi um cansaço ainda mais raivoso do que havia em 2015. Se naquele ano atacavam-se a corrupção e a deterioração econômica apontando apenas para o kirchnerismo, em 2023 essa insatisfação cresceu de modo mais hostil, abraçando também a oposição.

O achado de Milei, de chamar a todos, incluindo a oposição, de “casta” lhe deu vantagem desde o início de sua escalada, nas eleições legislativas de 2021, quando se elegeu deputado.

É preciso olhar para a história para avaliar as chances de êxito de Milei em seu governo. Macri teve como um de seus únicos sucessos o fato de ser o único opositor ao peronismo a completar um mandato. Os demais todos saíram antes. Esse fantasma acompanhará Milei, uma vez que o peronismo na oposição atua em sua forma mais eficiente, mobilizando sindicatos, militância e províncias em que reina há décadas.

Outro entrave para Milei será o Congresso, onde não terá maioria. Também a Constituição, que colocará travas a sua ideia de promover consultas populares vinculantes para aprovar medidas como a dolarização ou outras que não teriam chance, a princípio, de passar pelo Parlamento.

Se saem de cena os Kirchners, o peronismo vai se reagrupar em torno de novas figuras e terá o espaço deixado pelo Juntos pela Mudança.

O peronismo também tem recursos para conter “estallidos” e evitar grandes tensões sociais, justamente por distribuir benefícios. Milei não contará com isso. Se não entregar resultados rápidos nos primeiros meses, a chance de a insatisfação tomar as ruas é muito grande.

Sylvia Colombo, jornalista

Fonte: https://www.folha.uol.com.br/

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