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Esquerda, democracia e despolarização

Esquerda, democracia e despolarização

Parece algo distante no tempo, mas pouco mais de 30 anos se passaram desde que pareceram se desfazer no ar as razões da esquerda, identificadas sumariamente com o comunismo histórico e o tipo de sociedade que criou na União Soviética e em seus satélites. O mundo se mostrava plano, os enigmas estavam decifrados. Um certo tédio, aliás, se anunciava: uma democracia formal, de baixa intensidade, poderia apoiar-se indefinidamente em mercados globais e numa cultura de consumo capaz de avassaladora universalização.

Relativamente pouca gente se manifestou contra esse bizarro panorama de terra plana. Na época, num pequeno livro, o italiano Norberto Bobbio teve a coragem de divergir. Sem arroubos retóricos, como de hábito, defendeu a pertinência da oposição entre direita e esquerda no novo contexto global. A velha distinção, nascida casualmente com a distribuição de cadeiras na convenção francesa de 1793, ainda seguiria sendo uma boa chave interpretativa. A igualdade, segundo Bobbio, haveria de se enriquecer com conteúdos novos. Além das diferenças de classe, mal teriam começado a ser arranhadas as de gênero e raça. E o caminho da esquerda, em sentido lato, longe de haver terminado, estava rigorosamente no início.

Impossível esquecer a serena e nem por isso menos incisiva intervenção do filósofo, feita num momento de desorientação entre os críticos da então nova ordem. Paradoxalmente, a ela recorremos quando, poucas décadas depois, o terraplanismo político adquire outros rumos e inéditas dimensões. Na vertigem da crise da globalização e da irrupção das redes sociais, a anterior monotonia de um mundo sem esquerda se vê substituída pela algaravia dos que, de um lado e de outro, promovem a redução de todas as coisas a um combate não menos monótono entre direita e esquerda – ainda por cima, geralmente entendidas nas suas mais elementares formulações.

Não é verdade que a polarização destrutiva dos nossos dias seja uma novidade absoluta. Considerando apenas a política do século 20, regimes totalitários de tipo fascista afirmaram-se com base na desumanização do adversário transformado em inimigo, para usar a imagem muito usada, mas ainda contundente. Os que se opunham valentemente a esse tipo de regime por vezes lutavam o combate errado, vendo a política como contraposição frontal de blocos inconciliáveis. Era a política de classe contra classe, uma variante de jogo de soma zero. Em caso de vitória, no futuro Estado socialista não poderia haver lugar para o “inimigo do povo”.

Se não é novidade, a polarização atual vale-se da velocidade sobre-humana das redes sociais e da quase ilimitada possibilidade de manipulação de consciências à disposição dos autoritários. A desordem informativa que daí deriva não é inocente. Ela tem como alvos preferenciais as democracias ocidentais – uma categoria, a de Ocidente, que aqui não tem conotação geográfica e serve para designar sociedades em que, readaptando José Guilherme Merquior, se possa ser anarquista na cultura e socialdemocrata na política e na economia, sem excluir outras formas de contribuir para o bem comum. O objetivo daquele impulso de destruição não criadora é, precisamente, a divisão da sociedade em campos que se recusam ao mútuo reconhecimento. Deve vencer o mais forte – e o vencedor leva tudo.

Aberrações à parte, como a protagonizada por Hugo Chávez e Nicolás Maduro, é forçoso reconhecer que este é o programa básico do moderno, ou pós-moderno, radicalismo de direita. Em torno da ideia de democracia iliberal articula-se o autoritarismo, ou coisa pior, em escala global. Bem sintomática a rejeição de princípio expressa no conceito. Democracia até pode haver, desde que entendida como eleições plebiscitárias sob o império do medo. As instituições contramajoritárias propriamente liberais, que protegem minorias e controlam o poder, é que devem ser limitadas ou excluídas – por isso, diante do nome liberal é que se coloca o prefixo negativo. A cereja do bolo é o homem forte, o líder providencial, o Pai da Pátria.

O programa dos democratas só pode partir de uma estratégia pertinaz de despolarização. A esquerda, em particular, não estará à altura do seu desígnio histórico de igualdade, caso aceite e reitere, por incapacidade teórica ou inabilidade prática, a divisão da sociedade em metades rivais. Simplesmente, não há projeto transformador viável em tal ambiente de ódio e desavença até afetiva, como hoje se diz. Ao contrário, não por acaso há uma floração de livros e filmes que retratam uma distopia em cujo cerne aparece a guerra civil, o maior dos flagelos, ao entronizar a violência como recurso supostamente legítimo.

A despolarização é o fundamento mais essencial das políticas de frente democrática, que bem ou mal voltaram ao discurso público. Sem tal fundamento, não será possível convocar a generalidade dos atores (inclusive a direita constitucional) para a tarefa comum de defender a convivência civilizada, que, com seus confrontos legalmente regulados, é o oposto exato de qualquer versão do terraplanismo político.

Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil.

Fonte: https://www.estadao.com.br/

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