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Em busca da borda

Um farmacêutico de Wisconsin foi preso pelo FBI por destruir 500 doses de vacina. Depois de horas de interrogatório, ele confessou justificando que estaria protegendo as pessoas de ter seu DNA modificado e de se tornar inférteis. Durante o depoimento, ele listou as teorias em que também acredita: o céu não é real, e sim uma película que evita que enxerguemos Deus, o fim está próximo, e a Terra é plana.

Anderson Cooper, jornalista e âncora da CNN, entrevistou um dissidente do QAnon que se desculpou ao vivo por ter acreditado que o apresentador comia bebês.

Uma deputada recém-eleita, também seguidora do QAnon, apareceu nas redes sociais questionando a autoria do 11 de Setembro e as chacinas em várias escolas americanas, que teriam sido encenadas para provocar a restrição ao porte de armas. Para ela, os incêndios na Califórnia foram provocados por raios laser vindos do espaço e controlados por banqueiros judeus. Apesar do apoio de Trump e da tolerância do Partido Republicano, foi expulsa da Comissão de... Educação.

Parece normal para o país onde a cientologia é levada a sério. Onde as seitas de Jim Jones e Marshal Applegate convenceram seus seguidores a se suicidar ou porque o fim estava próximo, ou porque um cometa faria uma parada na Terra para levá-los a outros planetas.

QAnon é uma comunidade on-line com milhões de seguidores. Nascida da compulsão dos conservadores de duvidar da realidade se ela for dissonante de seus conceitos de moral.

Crenças cristãs, profecias de fim dos tempos e preconceitos raciais profundos se misturam perigosamente com política. Vivem uma nostalgia de um tempo quando os homens brancos americanos eram a maioria dominante e não precisavam lidar com questões raciais ou com a emancipação feminina. Com um medo profundo de uma inevitável mudança demográfica e social provocada por uma conspiração de democratas pedófilos adoradores de satã, liberais, judeus, chineses, mexicanos, Black Lives Matter e comedores de bebês. Em resumo, comunistas.

Não consigo me lembrar de muitas teorias conspiratórias incendiárias tipicamente brasileiras.

Acho que todo mundo acredita que Getúlio se suicidou, mas muitos desconfiam que Jango e JK talvez tenham sido assassinados pela ditadura e que a final da Copa de 98 foi no mínimo estranha, assim como são suspeitos os jogos que meu Fluminense perde.

Parece que até nisso o Brasil prefere o produto importado. QAnon já está por aqui e ronda Brasília. O vírus chinês produzido em laboratório, Bill Gates implantando chips em vacinas para controlar a população mundial, e a mídia transformando uma gripezinha numa pandemia são hoje teorias globalizadas, com seguidores no Brasil e em vários outros países.

Todos têm o direito de acreditar no que lhes fizer mais sentido. Sem cancelar ninguém, é preciso rebater com argumentos, dados e paciência. Tentar entender as razões que levam as pessoas a duvidar do senso comum e da ciência dá trabalho, mas é o preço que pagamos para vivermos em plena liberdade de expressão.

Para mim, existe limite para a tolerância com a desinformação: quando algumas alucinações coletivas são criadas por má-fé, em nome de uma agenda qualquer, gerando uma ação ou uma omissão que colocam em risco a vida de alguém.

O farmacêutico de Wisconsin é a prova da tese de que nada é mais perigoso que um idiota proativo.

Outro limite é o terraplanismo. A mãe de todas as teorias conspiratórias: se alguém acredita que a Terra é plana, com certeza acredita em quase todas que citei acima.

Com o dinheiro de um George Soros, eu recriaria a viagem de Fernão de Magalhães ao redor do mundo que provou que a Terra não é um disco. Um cruzeiro gratuito para todos os que, depois de 500 anos, ainda acreditam que a Terra é plana. Uma viagem científica em busca da borda do mundo. Muitas palestras educativas a bordo: “Stanley Kubrick não encenou o homem na Lua”, “Elvis está morto e enterrado”, “Hitler não é pai de Angela Merkel”, “Holocausto é real”, “A CIA não derrubou as Torres Gêmeas”.

Se Fernão de Magalhães estiver certo, o navio nunca chegaria a lugar algum, provando que a Terra não é plana e, efeito colateral positivo, mantendo por um tempo todos os terraplanistas longe da terra firme. E redonda.


Marcello Serpa, publicitário 

Fonte: https://oglobo.globo.com

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