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A república hipócrita 

A república hipócrita 

Por quase toda história da escravidão, o senhor podia, legalmente, matar ou torturar seu escravo, mas não se conhece manifestação favorável a estes gestos por parte de qualquer dos dois imperadores que governaram o Brasil naquele tempo. Depois de 133 anos de República, 37 de democracia cidadã, ainda vemos licença para maus ou incompetentes policiais assassinarem descendentes sociais dos escravos, quase todos descendentes também biológicos; e o Presidente, eleito por 56 milhões de cidadãos, manifestando simpatia pelos que matam, com o argumento de que estão defendendo a ordem, mesmo argumento dos escravocratas. A maldade do governante aumentou, apesar de eleito.

Diferentemente, porém, dos brasileiros livres de antes, que aceitavam o direito de matar para alguns, agora a população se divide entre os que defendem este direito como parte da tarefa de policiais e muitos que se manifestam contra por considerá-los maus ou incompetentes para cumprirem suas obrigações. Incapazes de serem bons policiais, como seus colegas, sem atirar balas perdidas matando crianças, sem assassinar cidadãos decentes, cujo crime é o endereço em que mora ou passava, ou mesmo matar bandidos, em um país sem pena de morte.

Mas para os que se indignam com a maldade ou a incompetência de alguns policiais, a hipocrisia cresceu nestes 133 anos. Porque se indignam depois de cada violência física, tortura ou morte, mas toleram o sofrimento e a morte de milhões de brasileiros pela fome, a sobrevivência precária de muitos milhões na pobreza, a violência permanente sobre 12 a 14 milhões de adultos brasileiros analfabetos.

Genivaldo de Jesus foi asfixiado com uma bomba de gás dentro do camburão da polícia, e o Presidente justificou. Milhões de analfabetos estão permanentemente submetidos a asfixia intelectual ao longo de suas vidas, diante do silêncio dos governantes, dos oposicionistas, de juízes e procuradores e da população em geral. Que tampouco se manifesta diante das milhões de crianças que estão esperando para ampliar este exército de analfabetos, e os muitos milhões que frequentarão a escola, mas não serão alfabetizados para os desafios na vida contemporânea. E cairão na penúria, onde arrastarão a sobrevivência, candidatos a Genivaldo de Jesus.

Nos indignamos com as barbaridades de maus policiais e com declarações do presidente, mas aceitamos hipocritamente um sistema escolar que prepara candidatos a camburão e gás, pela pobreza que vem da falta de educação. Indignados, mas elegendo presidente que justifica a barbaridade.


Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

Fonte: https://www.metropoles.com

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