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A política de quartel na Saúde e o silêncio dos médicos

Desconheço exemplo parecido no mundo. Ministro errado no lugar errado na hora errada. O ministro da Saúde, Pazuello, é um general da ativa que nada entende de vírus ou pandemia. A política de quartel na Saúde está disseminada. Um manda, outros obedecem. Militares dirigem hospitais federais. Médicos bolsonaristas dirigem conselhos regionais. Tem médico conselheiro contra aborto de feto anencéfalo! Ou contra uso obrigatório de máscaras. E isso explica o silêncio da categoria neste trágico 2020.

Conversei com Celso Ferreira Ramos Filho, o infectologista que assumiu em outubro a presidência da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro. Após a morte do cirurgião Ricardo Cruz por Covid, Celso redigiu nota oficial chamando de “homicidas” os governantes que desprezaram a vida. Negaram a ciência. Encorajaram tratamento precoce, cloroquina e remédios para piolho e sarna. Condenaram máscaras. Incentivaram aglomerações. Não se prepararam para a vacinação. Confundiram o povo sobre a necessidade da vacina. Crime.

No meio do ano, escrevi a médicos e perguntei: “Por que vocês não reagem?” Depois de dois ministros médicos, o brilhante Mandetta e o mudo Teich, não mexe com os brios ver um general ignaro e subserviente no comando da Saúde? Resposta: a categoria está dividida e há muitos bolsonaristas. Votaram em peso contra o PT, porque Dilma pagava mais a médicos cubanos do que a brasileiros e aceitava diplomas de Medicina em universidades de reputação discutível. 

Com o ministro general genérico, acabaram as coletivas, adiou-se divulgação dos números, mudou a contagem oficial. A manipulação da verdade só não venceu porque existe imprensa profissional. Assistam ao documentário “Cercados” no Globoplay, que reconstitui os bastidores de uma guerra de nervos. Jornalistas, enfermeiros e médicos na linha de frente arriscam a vida e a sanidade. E choram trabalhando. Em “Cercados” – nome com duplo sentido, os cercadinhos do Planalto e o cerceamento da informação –, revemos heresias e ofensas proclamadas por Bolsonaro. 

“Gripezinha”. “País de maricas”. “Enfrenta o vírus como homem, porra”. “Histeria”. “Vamos todos morrer um dia”. “Não sou coveiro”. “Sou Messias mas não faço milagre”. “O Brasil deveria voltar à normalidade” (março de 2020). “Máscara é coisa de viado”. “Meios de comunicação espalharam o pavor”. “Da China nós não compraremos a vacina. Decisão minha”. “Cala a boca” (para repórteres). 

Justiça seja feita. A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Fiocruz não se calaram. Desde março. O presidente da SBI, Clovis Arns, sofreu ameaças por uma nota. Ele refutava, com argumentos científicos, o posicionamento de Bolsonaro diante da Covid. Marcus Lacerda, da Fiocruz do Amazonas, foi ameaçado de morte em abril após pesquisa sobre efeitos tóxicos da cloroquina. Passou a andar com escolta. Agora, o Ministério Público interpelou a Sociedade de Infectologia em carta assinada pelo procurador da República! O MP exige que a Sociedade comprove o benefício de analgésicos e justifique a ineficácia da cloroquina. Retaliação inoportuna. É assim. Quem não bate continência sofre assédio. 

“O Brasil não faz ideia do nível de violência dirigido a médicos que ousam desafiar a visão oficial. A missão é ficar quieto, calado e fazer exatamente o que mandam o ministro da Saúde e o chefe dele”, disse Celso. O vice-presidente, general da reserva Mourão, afirmou que “a política não pode entrar no quartel”. É o contrário, Mourão. O quartel entrou na política. 

(atualizando: a Academia Nacional de Medicina, em nota hoje, reprova “com enorme indignação” o “descaso, descuido e negligência das autoridades”, “menosprezando a vida dos cidadãos”. Critica “o negacionismo irresponsável” e diz que “a falsidade vai continuar matando” brasileiros. Admite que “estamos muito atrasados” em relação às vacinas. E diz que “a testagem em massa é imprescindível”. Algo que o mundo todo civilizado já sabe há tempos. Foi preciso a Sociedade de Medicina e de Cirurgia do Rio quebrar a inércia para que a Academia Nacional, com 191 anos de existência, se pronunciasse. Tem algo muito errado aí, não acham?)


Ruth de Aquino, nasceu no Rio. Jornalista desde 1974. Mestrado em Londres sobre Ética na imprensa. Foi repórter, editora, diretora de redação, correspondente em Londres e Paris. Escreve sobre o ser humano e suas contradições.

Fonte: https://blogs.oglobo.globo.com

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