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A internet é o alimento e o bicho da urna eletrônica 

O debate sobre fraude nas eleições tem cara e focinho de um clone verde e amarelo da derrota de Donald Trump, criado aqui como lá no laboratório das redes sociais, onde é alimentado. Mas o que, afinal, provoca a aderência da opinião pública brasileira ao tema, além do agendamento pelo presidente e seus apoiadores? Em monitoramentos digitais e em focus groups que tenho acompanhado, o principal argumento de quem duvida do nosso sistema de votação é o de que as urnas eletrônicas seriam suscetíveis a ataques cibernéticos por que estariam, de algum modo, conectadas à internet. Ou seja, a internet que cria e alimenta o debate é a mesma que poderia dar um resultado bichado à eleição de 2022, de acordo com uma parcela considerável da população brasileira.

Na pesquisa Exame/Ideia divulgada no final de maio, 31% dos entrevistados disseram preferir o voto impresso versus o eletrônico. É um número importante, especialmente se levarmos em conta que o sistema de votação desenvolvido pelo Brasil nunca teve uma única fraude provada em 25 anos de existência; sequer seus resultados geraram dúvida em mais de 13 pleitos consecutivos, exceto e raramente para construir a narrativa de maus perdedores. Existem, por outro lado, eventos paralelos que podem contribuir para o crescente aumento da descrença no sistema de votação: o acirramento da polarização política, o ativismo digital, a proliferação das fake news e este novo problema da humanidade chamado cibersegurança.

É nesse ambiente que os brasileiros passaram a ter pesadelos com ataques de hackers imaginários e a sonhar com algum papelzinho, mísero que seja, que garanta a confiabilidade do processo eleitoral. O que mais preocupa a esses eleitores não é exatamente a máquina, mas o homem que está por trás dela. Um temor relacionado à fragilidade de um equipamento tecnológico frente à corrupção do sistema político brasileiro, em que “os poderosos” poderiam influenciar os resultados dentro da urna. Assim, além da celeridade e da modernidade da urna eletrônica, este grupo de eleitores almeja um “recibo” impresso do voto eletrônico. Pro caso de um suposto chip ter sido introduzido na urna pra mudar especificamente o voto da pessoa, sei lá.

Outro motivo dado pelos pesquisados para duvidar da urna eletrônica é o fato de países desenvolvidos usarem o voto impresso. Ou, pelo menos, não terem aderido à invenção brasileira. Por que em países ricos da Europa o voto é em papel? Talvez por que quanto mais jovem e frágil é a democracia de um país, mais é necessário ter um sistema eficiente na hora de uma eleição? (Em 1996, quando o TSE implantou a urna eletrônica, não havia nem uma década desde que retomamos as eleições diretas para presidente, depois de um longo período de falta de liberdade.) Ainda que existam estas nuances, a questão surge com intensidade nos grupos de pesquisa qualitativa.

A eleição de 2014 é citada como exemplo de fraude por pesquisados que consideram que Aécio Neves teria vencido Dilma Rousseff caso tivesse ocorrido a materialização do voto. Agora, esta é uma preocupação maior do eleitor de Jair Bolsonaro. Entre os que aprovam o governo, enormes 56% preferem o voto impresso. Em outro recorte, menos ideológico, os eleitores que estudaram até o ensino fundamental ficaram divididos: 37% preferem o voto eletrônico e 35% o impresso. Já entre as pessoas com ensino superior, 58% preferem o eletrônico e 25% o impresso.

Nas redes sociais, cabe destacar um movimento dos ativistas da materialização do voto pela adoção da expressão mais palatável “voto auditável” em lugar de “voto impresso” com objetivo de trazer mais apoiadores para a causa. De fato, a emenda à Constituição proposta pela deputada Bia Kicis (PSL-DF) prevê que o voto eletrônico seja impresso e depositado em uma urna física para ser conferido em caso de necessidade. Em outras palavras, auditado. Claro que ninguém pensou em marcar um xis com uma Bic num quadradinho e passar semanas contando votos. Ou pensou?

De qualquer forma, caso a PEC seja aprovada, – o que é improvável pela posição contrária de 11 partidos – não serão poucos os obstáculos. O primeiro deles é o prazo para a adoção da medida até o ano que vem. É possível? A segunda é o custo bilionário do processo, num momento de crise econômica. O desafio fundamental, no entanto, é fazer tudo isso sem colocar (mais) em risco a credibilidade do sistema eleitoral brasileiro e sem gerar mais insegurança.

Em tempo: a urna eletrônica brasileira não é conectada a nenhuma rede, incluindo a internet. A única conexão possível dela é com um bom e velho cabo para ligar na tomada caso precise de energia.


Cila Schulman, jornalista

Fonte: https://www.metropoles.com

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