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A história das vitórias amargas

A história mundial e a brasileira registram vitórias que tiveram a acidez das derrotas. Triunfos conquistados com sacrifícios extremamente elevados, nos quais os prejuízos superam os benefícios, são vastos e pedagógicos. Os êxitos fugazes e com resultados nocivos deixaram legados que ainda hoje são desconsiderados na celebração das conquistas sobre os oponentes. As eleições das direções do Congresso Nacional representam um divisor de águas da perspectiva institucional, do Estado Democrático de Direito, da ordem jurídica, da racionalidade, do isolamento mundial, da prevalência da ciência e dos avanços civilizatórios. Há vencidos que se eternizaram como heróis vitoriosos e ganhadores sobrepujados pelo impiedoso julgamento histórico.

Jair Bolsonaro perdeu os embates recentes nos quais se envolveu diretamente. Na eleição municipal a logomarca Bolsonaro foi humilhada, incluindo a Wal do Açaí e a ex-esposa. O filho foi reeleito vereador com uma desidratação nos votos. Nenhum dos candidatos nas capitais apoiados pelo capitão foi eleito. Todos os aliados de Bolsonaro no exterior perderam a eleição. Malogrou na Argentina, Bolívia, Venezuela e, amargamente, com Donald Trump.

No STF o autoritarismo não ganha uma. Perdeu no combate à pandemia, na guerra das vacinas e na economia destroçada. Mas em sua batalha doméstica mais relevante, o governo apostou alto, esfolou a independência constitucional dos poderes e venceu no Congresso recorrendo aos métodos qualificados por ele como “velha política”, mesmo tendo sido filiado a 8 legendas do ‘centrão’ ao longo da vida. O segmento agora foi alçado ao comando do Poder Legislativo.

São documentadas e eternas as bravatas de Eduardo Bolsonaro e Augusto Heleno na convenção do PSL de 22 de julho de 2018 que indicou o capitão: “Se gritar pega ‘centrão’ não fica um meu irmão”, disse o general parodiando Bezerra da Silva para se referir a gatunagem do agrupamento. Eduardo Bolsonaro usou o mesmo tom: “Eu queria tirar foto de cada um dos senhores aqui para saber se em 2019, quando o couro comer para valer, vocês vão se deixar seduzir pelo discurso do ‘centrão’ ou se vão manter firmes e fortes com Bolsonaro”. O capitão capitulou, regressou confortavelmente às suas origens na “velha política” e as fotos de cada um dos participantes na convenção seriam úteis. O ‘centrão’ não dá a mínima para esses fricotes.

O governo canta vitória na eleição do Congresso, mas pode ser escravizado pelo ‘centrão’, corsários vorazes e insaciáveis. A glória pode se metamorfosear e adquirir, em breve, um amargor de fracasso. As negociações pontuais serão cada vez mais onerosas e colidindo com teses centrais do liberalismo econômico de Paulo Guedes. Entre elas as privatizações e a continuidade do auxílio emergencial. O ‘centrão’, que tentará capturar Bolsonaro para refém, gosta de verbas e cargos públicos para empregar apadrinhados. A incerteza e desconfiança permeiam a relação. O liame é sempre frágil porque é modulado pelo atendimento fisiológico. Quando sentem o cheiro do fracasso, a iminência da ruína, abandonam o barco. Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff sabem o preço da vitória a qualquer preço.

Entre as glórias vãs da história, a vitória de Pirro é a mais célebre. A expressão é derivada da história do rei de Épiro, que superou os romanos a um custo muito elevado. Em alguns registros, a frase dita foi “mais uma vitória destas e retorno a Épiro sozinho”. Pirro sofreu perdas estratégicas e estava longe de casa para repor suas tropas; os romanos, por outro lado, absorveram a derrota com facilidade, tendo abundância de homens para recrutar. Ao ser parabenizado por um soldado, Pirro respondeu que outra vitória como aquela seria o seu fim. O nome de Pirro é sinônimo de vitórias inúteis e fugazes. Qual o valor do triunfo se ele implica em dizimar a própria sociedade e recende à ruína?

Alguns enxergam no comando do capitão um traço de inspiração bonapartista, em razão da ascendência dos militares. As rotineiras guerras napoleônicas, contra tudo e contra todos, dispendiosas e muito desgastantes, geraram uma ilusória consagração. Do que adiantou o triunfo sobre os russos e austríacos em Austerlitz? A destruição, o belicismo ininterrupto, o comportamento ditatorial, o isolamento na Europa e rivalidades contra a Inglaterra, o empurraram para o exílio. Dez anos depois, a tentativa de restabelecimento do império, o governo dos 100 dias, fracassou. São inúmeros os legados de Napoleão para a França moderna nas artes, arquitetura, direito e economia. Entretanto, seu nome é associado mais frequentemente às batalhas perdidas em Trafalgar em 1805 e, a definitiva, Waterloo, uma década depois. A falsa sensação de invencibilidade contaminou até mesmo Napoleão e o levou ao debacle.

Qual o julgamento histórico sobre o avanço nazista na França? O que a história registra sobre aqueles que se agacharam ao poder de momento em seus países dilacerados, humilhados pelo terror, opressão e genocídio conduzido pelos nazifascistas? Qual foi o destino do marechal Phillipe Pétain, oficial francês adesista a Hitler, acusado de deportar 77 mil pessoas para os campos de extermínio, apontado como traidor e condenado pelo crime? A vergonha, infâmia e, ao final, a condenação à morte, convertida em prisão perpétua. Os democratas, os humanistas e a civilização celebram até hoje Charles de Gaulle, Franklin Roosevelt e Winston Churchill. Jamais Phillipe Pétain, uma sombra mortal e abjeta.

Na história recente do parlamento brasileiro Eduardo Cunha e Severino Cavalcanti conheceram os louros da vitória. Foram glorificados após a sagração na presidência da Câmara dos Deputados. Hoje estão inscritos no rol da escória e dos repugnantes. Severino Cavalcanti, ícone do baixo clero e síntese da má-índole do ‘centrão’, eternizou-se pelo ‘mensalinho’, extorquido de um contratado da Câmara dos Deputados, e pela defesa despudorada da fisiologia e do nepotismo. Mesmo com seu troféu, obtido a partir dos cabalísticos 300 votos de seus pares (“os 300 picaretas”, dito por Lula), renunciou e saiu pela porta dos fundos 7 meses depois, com o carimbo de corrupto. Ele exigiu R$ 60 mil do empresário Sebastião Buani para renovar por três anos a concessão do restaurante que funcionava na Câmara. Jamais se reabilitou e seu lugar no elenco vitorioso é entre os canalhas decaídos.

Eduardo Cunha, sentenciado a mais de 15 anos por corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, experimentou o dissabor de ter vencido após 17 meses no comando da Câmara dos Deputados. Depois do PT se recusar blindá-lo no Conselho de Ética, Cunha se vingou da ex-presidente Dilma Rousseff abrindo o processo de impeachment. Os 267 votos obtidos para dirigir a Câmara simplesmente evaporaram. Ele foi afastado do mandato e da presidência por uma decisão unânime do STF em maio de 2016. Renunciou em julho do mesmo ano e foi trancafiado 3 meses depois. Outra batalha que, certamente, seria melhor estar entre os derrotados. Cunha é o vencedor eternizado na categoria dos torpes e desonestos. Após a maquinação do vitorioso Cunha, a suplantada Dilma Rousseff soou profética: “Não gostaria de estar no lugar dos que se julgam vencedores. A história será implacável com eles”, disse ao citar Darcy Ribeiro.

Sob o cenário fantasmagórico de 1964, Auro de Moura Andrade, presidente do Senado declarou ilegalmente a vacância da presidência da República. João Goulart estava em território nacional resistindo ao golpe com o apoio das tropas legalistas. Um triunfo das forças golpistas, discricionárias e momentâneo que perdurou por apenas uma semana. Os militares do Comando Supremo da Revolução baixaram o 1 Ato Institucional cassando mandatos, suspendendo direitos, suprimindo garantias constitucionais e fixando a eleição indireta do presidente da República. Moura Andrade, aspirante a presidente, foi derrotado por Castelo Branco. O governo militar inaugurou a mais tenebrosa fase de terror e mortes que durou até 1985. Moura Andrade entrou para a história como sabujo dos militares e, novamente, o fato de estar entre os vencedores de momento foi aviltante.

Os primeiros sopros de liberdade no Brasil foram bafejados por outro derrotado. Joaquim José da Silva Xavier, Tiradentes, é um herói nacional, referência das causas nobres e humanitárias. Seu homônimo, Joaquim Silvério dos Reis, um coronel da cavalaria, foi o ganhador da ocasião. É um reles delator, figura deletéria sacralizada pelos Torquemadas da Lava Jato, que também experimentou um triunfo temporário obtido através da usurpação, ilicitudes e transgressões. Ulysses Guimarães é outro libertário, outro sagrado perdedor da história. Os insucessos, na anti-candidatura e como candidato oficial em 1989, são insubstituíveis para a democracia. Foi cristianizado. Sinônimo brasileiro para traição e conveniência por temor às derrotas. Ulysses Obteve uma votação pífia na eleição que entronizou o vencedor Fernando Collor. Collor sofreu um impeachment e Ulysses, um mito real, entregou ao Brasil a Constituição Cidadã, um santuário da democracia. Uma derrota edificante.

O poder é efêmero e a infâmia eterna. Em todos os momentos de inflexão da humanidade nos defrontamos com antagonismos opondo bem e mal, vida e morte, civilização e barbárie, vício e virtude, ciência e crença, conhecimento e ignorância, luz e trevas, isolamento e cooperação, verdade e mentira. É a eterna dicotomia que aflige as civilizações ciclicamente. A história sempre se encarregou de desmascarar e condenar os patifes e seus asseclas à fornalha da torpeza. Os facínoras, as ignomínias e a empáfia passam, enquanto os princípios morais que forjaram a humanidade são imorredouros. Os valorosos sucumbem por eles, mas os princípios não morrem jamais. Antes ser batido nas causas justas do que triunfar ao lado dos vis.


Weiller Diniz, jornalista

Fonte: https://osdivergentes.com.br

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