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A espetacularização do estado  

Mais que consolidar a imagem de um Estado-Policial, a Polícia Federal, com suas operações teatralizadas, transmite a sensação de que o Brasil passou a ser um dos mais representativos entes do chamado Estado-Espetáculo.

Trata-se do Estado das aparências, da visibilidade, das ações teatrais e cinematográficas, que vem sombreando o terreno da política desde os tempos de Luis XIV, o rei Sol. Assim chamado pelo espalhafato que fazia em torno de si, com suas vestes ornamentadas e adornadas com pedras preciosas, incluindo, até, seu cavalo cravejado de diamantes, em desfiles exuberantes no Palácio de Versailles.

O Estado-Espetáculo é um fenômeno que ganhou corpo na contemporaneidade, considerando que esta era tem início com a revolução francesa. A política deixa de ser missão, como pregava Aristóteles, para se transformar em profissão, à qual ascenderam protagonistas de todas as classes e grupos, particularmente em tempos mais recentes, estes com a marca da organicidade social, que divide a sociedade em núcleos e alas, cada qual com sua teia de demandas.

Os representantes dessa sociedade se fazem presentes nos Executivos, no Parlamento e no Judiciário, alguns carimbados com o selo do conservadorismo, outros com a marca de liberais e progressistas e uma turma que defende a chamada social-democracia, um modelo que prega um Estado com foco em programas sociais, sob o escudo de um Estado de tamanho adequado, nem paquidérmico nem anão.

Vivemos a plena Era do Estado-Espetáculo, onde os atores políticos desempenham os mais variados papéis: heróis, Pais ou Salvadores da Pátria, estrelas da constelação política. Estamos em plena Era da Imagem. Que se sobrepõe à verbalização das opções políticas. Vivenciamos a Era do cinema do poder. O ciclo do vedetismo, o ciclo das ilusões, das promessas mirabolantes. Em nossa frente, divisamos uma larga avenida de spots publicitários, de fosforescência televisiva, dos media consultants, ou seja, modeladores de imagem.

Quê fundamentos explicam o Estado-espetáculo? O interesse humano pelo espetáculo, pela diversão, pela distração. A hipótese que explica certos fenômenos que mexem com o estado d’alma da população se ancora na sobrecarga das demandas sociais, nas frustrações com o desempenho do poder público, nas expectativas que conduzem grupos a procurar mecanismos de recompensa psicológica.

Grandes contingentes são atraídos por conteúdos diversionistas que funcionam como contrapontos compensatórios em momentos de crise. E quanto maior a crise, maior será o sucesso dos olimpianos da Cultura de Massa – atores, atrizes, reis, rainhas, celebridades de todos os calibres, incluindo os políticos, agentes evangélicos, padres carismáticos, figuras que tentam fazer uma ponte entre o divino e o humano.

À fragilidade do Estado provedor do bem-estar contrapõe-se o Estado-Espetáculo, com seu teatro de formas lúdicas e elementos ficcionais. Trata-se de um território deteriorado, com instituições frágeis, conteúdos sociais amorfos, descrença geral na política, carente de cidadania, aberto à pirotecnia da mídia e à banalização dos costumes.

Vejamos, por exemplo, o caso de uma instituição de Estado, a Polícia Federal. Qual o motivo de substituição de 20 delegados que atuavam em importantes espaços? Melhorar a eficiência administrativa ou ser extensões dos interesses do Poder Executivo, a quem se subordina? Por quê ações tão espetacularizadas, como essa mais recente que culminou com a busca e apreensão nas casas dos irmãos Gomes (Ciro e Cid Gomes), no Ceará, abrigando até fotos do diário da esposa do pré-candidato à presidência da República.

Essa moldura explica os casos escatológicos exibidos em programas populares, além de mecanismos catárticos para diversionismo das massas. Ícones de um momento de descrença geral, porta-vozes religiosos e místicos usam a esteira da aeróbica do Senhor para comover multidões, vestindo a liturgia religiosa com um manto moralista, banalizando a doutrina e o dogma ao nível do universo tecnetrônico (mistura de tecnologia e eletrônica) e dando sentido ao conceito mcluhaniano de que o meio é a mensagem.

O processo de estandardização litúrgica dos credos, infelizmente, é o retrato mais que acabado de um tempo em que o principal dá lugar ao acessório. O Estado-espetáculo mexe com a cabeça, fazendo adormecer a cidadania.


Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista e professor titular da USP

Fonte: https://www.metropoles.com

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